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Da Redação
Publicado em 29 de setembro de 2021 às 06:00
- Atualizado há 2 anos
Divulgação Estreia do baiano Wagner Moura como diretor, ‘Marighella’ deve enfim chegar aos cinemas em novembro, mas a versão internacional do filme vazou antes na internet.>
Adaptação da biografia de Carlos Marighella escrita por Mário Magalhães, o filme se passa entre 1964 e 1969, mostrando a parte final da vida do escritor, político e revolucionário baiano, interpretado por Seu Jorge. O filme aglutina toda a ação alucinante da guerrilha urbana num microcosmo com poucos personagens que gravitam ao redor de Marighella. Em maior ou menor grau, eles foram inspirados em pessoas reais.>
Almir, personagem de Luiz Carlos Vasconcelos, é uma clara referência a Joaquim Câmara Ferreira, comandante da Ação Libertadora Nacional (ALN) ao lado de Marighella. Humberto, interpretado por Humberto Carrão, tem semelhanças com Marco Antônio Brás, o Marquito. Quando grava uma fita da Rádio Libertadora com Marighella, Bella, personagem de Bella Camero, é uma referência a Iara Xavier Pereira.>
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Jorge, interpretado por Jorge Paz, tem a mesma trajetória de Virgílio Gomes da Silva. Seu calvário nas mãos da repressão, um dos relatos mais dramáticos daquela época, é representado na tela. Já o facínora Lúcio, papel de Bruno Gagliasso, é uma referência ao delegado Sérgio Paranhos Fleury.>
Há também o papel de Herson Capri, que interpreta Jorge Salles, diretor do fictício “Tribuna do Sudeste”. Ele publica no jornal o manifesto da ALN que foi ao ar na Rádio Nacional depois que guerrilheiros conectaram um gravador à torre de transmissão. Na vida real, foi Hermínio Sacchetta quem desafiou a censura e publicou o manifesto.>
Adriana Esteves interpreta Clara Charf, esposa de Marighella. Mas a Clara do cinema é pouco mais do que uma mulher que espera pelo marido e sonha com uma viagem de férias para os EUA, enquanto a verdadeira Clara, hoje aos 96 anos, desempenhou papel importante na luta política.>
Na trilha sonora, o filme de Wagner Moura não usa nenhuma música da época, que foi tão marcante culturalmente, preferindo canções mais atuais. Logo no início, ouve-se “Banditismo por uma questão de classe”, de Chico Science & Nação Zumbi, com o verso “modernizar o passado é uma evolução musical”. No encerramento, há o rap “Mil faces de um homem leal”, de Mano Brown, que foi trilha do documentário “Marighella”, de Isa Grinspum, em 2012.>
Foi depois de assistir esse documentário que Caetano Veloso compôs “Um comunista”, canção em homenagem a Marighella, falando do “tédio, horror e maravilha” da guerrilha. A canção se enquadraria bem na proposta musical do filme.>
Quando Marighella (Seu Jorge) e Maria (Ana Paula Bouzas) veem uma blitz pela frente, a cena se parece com uma do filme “Lamarca”, de Sérgio Rezende. Mas é na parte em que os guerrilheiros expropriam um banco em que a citação a outro filme fica mais explícita. É quando o Marighella de Seu Jorge sobe em uma mesa e anuncia que aquela é uma ação revolucionária e que a imprensa está censurada. É a mesma mise-en-scène, e até as mesmas palavras quando cita a censura, de Luiz Fernando Guimarães em “O que é isso, companheiro?”, talvez o mais conhecido filme brasileiro a tratar daquele período.>
O verdadeiro Marighella participou de poucas ações de assalto a banco, e em nenhuma delas anunciava que aquele era um ato guerrilheiro, para não dar pistas à repressão. Ele tampouco chegou a participar de tiroteios de rua, como acontece no filme.>
Mas os roteiristas de “Marighella” conhecem muito bem a trajetória real do protagonista, adaptando-a para o bom funcionamento do arco dramático da ficção. Isso fica evidente na cena em que ele vai encontrar o filho Carlinhos na cidade de Cachoeira. Nessa circunstância também fictícia, a repressão arma o mesmo cenário que foi usado de tocaia para matar o verdadeiro Marighella na alameda Casa Branca.>
No filme, Carlinhos percebe a arapuca e grita antes que o pai se aproxime, permitindo que ele escape, como se fosse o alerta que os apoiadores de Carlos Marighella gostariam que tivesse acontecido na derradeira noite em São Paulo.>
Numa licença poética, na cena em que Carlinhos, mais novo na ficção do que era na realidade, vê a telefoto do pai assassinado, sua mãe, interpretada pela atriz Maria Marighella, neta de Carlos Marighella na vida real, grita emocionada a frase “Esse homem amou o Brasil”.>
A ALN realizou mais ações armadas depois da morte de Carlos Marighella do que enquanto ele esteve vivo. O final de “Marighella”, reafirmando a luta apesar das mortes provocadas pelo cerco implacável da repressão, dialoga com “Cabra Cega”, de Toni Venturi, outro filme que retratou o período.>
Detalhes da história de Carlos Marighella podem ser melhor encontrados nos documentários de Silvio Tendler e de Isa Grinspum, além das biografias escritas por Emiliano José e por Mário Magalhães. Mas é no filme “Marighella” que as cenas de ação da luta armada ganharam a melhor representação nas telas até agora, com o tédio, horror e maravilha daqueles que tentaram tomar o céu de assalto em pleno terremoto político, cultural e existencial do fim dos anos 60.>
*Lucas Fróes é jornalista.>