Marília, Monique e Thaianá: elas sustentam a casa sozinhas com até um salário

Mais de um milhão de baianas como elas criam e educam sozinhas os filhos com menos de R$ 1 mil/mês

  • Foto do(a) author(a) Hilza Cordeiro
  • Hilza Cordeiro

Publicado em 8 de março de 2020 às 05:30

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Betto Jr.
. por Betto Jr/CORREIO

"Preciso me desdobrar muito. Não tenho trabalho fixo, então um mês eu vendo uma coisa, outro mês vendo outra. Saio pelo bairro vendendo e a minha filha pequena vai no colo comigo porque mama e não tenho com quem deixar". É assim que a autônoma Marília Alves de Jesus, 34, moradora do bairro Alto das Pombas, define sua rotina diária como trabalhadora, mãe de três crianças e responsável por chefiar sozinha a própria casa.

Vivendo, em média, com R$ 35 por dia, Marília vende de tudo: de pasta de arear panela a batons e mini pizzas. Pelo Facebook e WhatsApp, ela anuncia para os clientes o que tem disponível no dia e sai à pé ou de ônibus para fazer as entregas. A habilidade para o comércio não veio de uma vocação, mas a partir da necessidade de criar os filhos, Isabel, de um ano, José Carlos, de 9, e Jaimson, de 12, todos nascidos prematuros.

Ex-funcionária de franquias de restaurantes de shopping, Marília teve que dar seus próprios “pulos” quando se viu desempregada. Sem o apoio financeiro dos pais de duas das crianças e com aluguel para pagar, a mãe encontrou nela mesma a própria saída."Tenho as minhas dificuldades, mas aprendi a andar com as minhas pernas e meus três filhos. Corro atrás e só posso agradecer. Apesar de tudo, sou muito feliz e hoje sobrevivo das minhas vendas”, relata. Marília com os três filhos em casa (Foto: Betto Jr./CORREIO) Ela precisa fazer uma ginástica difícil e heroica para gerenciar esse acúmulo de funções. Providenciar café da manhã e almoço, levar e buscar os meninos na escola, limpar a casa, sovar massa de pizza, entregar pedidos, dar conta de entender o choro da pequena, entre outras tantas responsabilidades. 

Para conseguir ter um melhor controle, tratou de garantir para os guris vagas em escolas municipais perto de casa, na Federação. Eles faziam banca, mas chegou uma hora que o orçamento apertou e ela teve que priorizar entre um e outro. Decidiu tirar do mais velho porque para ele só encontrava o reforço a R$ 100.“Às vezes, por exemplo, eu fico desnorteada quando vejo que o tem para comer está perto de acabar e não tenho nenhum dinheiro para receber. É aí que eu tenho que dar ‘meus jeitos’, recorrer ao cartão, pedir a uma tia. Eu não aguento ver um bico que eu vou, sou biqueira. Mas agora, com minha bebê de um ano, como faço para pegar um serviço de panfletagem? Quem vai ficar olhando ela para eu ir ali ganhar R$ 50?”, revela.Marília diz, ainda, que não queria ser mãe. “Eu queria ser PFem [Polícia Feminina]”, conta. Mas, como a maternidade é um caminho praticamente sem volta, ela afirma que, ao olhar para trás, orgulha-se muito de si mesma e da forma como consegue criar os filhos. 

Por medo da violência que ronda o bairro onde mora, ela nem mesmo  deixa eles brincarem nas ruas. Na última Black Friday, em novembro, comprou parcelado  uma TV para entreter os meninos. "Você tem noção do que é ter três filhos e não ter uma televisão? Eu ficava louca!", brinca. Mesmo com as limitações, deixá-los nunca foi uma opção. 

História de muitas Essa realidade de Marília é também a de 1,1 milhão de mulheres baianas, que vivem em famílias formadas por mulheres sem cônjuge e com filho(s) de até 14 anos. O número representa quase 8% da população do estado, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). De acordo com o órgão, esse arranjo familiar na Bahia é maior do que a taxa do país como um todo, que é de 5,6% da população. Em todo o estado, de cada 10 domicílios, quatro são chefiados por mulheres, o correspondente a 2,3 milhões de casas. Marília (Foto: Betto Jr./CORREIO) Do 1,1 milhão que compõem esse arranjo aqui no estado, mais de 78% é de mães solteiras e negras, 10% a mais do que a estatística nacional. No Brasil, entre as matriarcas solo com filhos menores, cerca de 37% não têm acesso aos três serviços básicos de saneamento, que são coleta de lixo, esgoto e abastecimento de água. Esse percentual chega a quase 42% entre as mães negras.

A história de Marília, portanto, não é única e se assemelha à da também autônoma Thaianá Alves, 31, moradora do bairro Santa Cruz e mãe de duas meninas, uma de 4 e outra de 10 anos. Thai, como ela prefere ser chamada, ficou desempregada no ano passado e, sem apoio, encontrava força nas orações. Pedia à Deus para a situação mudar. A fome bateu à porta e, num desabafo com uma conhecida, achou a resposta das preces. 

“Conheci uma amiga que se sensibilizou com a minha história e conseguiu me empregar numa gráfica em que eu ganhava R$ 60 por semana”, lembra. Morando de aluguel, ela vivia, ao todo, com R$ 527 no mês, sendo R$ 240 do trabalho e outros R$ 282 da soma da pensão de uma das filhas com o Bolsa Família.

Hoje, Thai trabalha com confecção e impressão de cartões de visitas, banners e convites de aniversário. Aprendeu tudo lá, sem nenhum curso, só de observar uma colega fazer. Mês passado, ela tomou um susto. A proprietária da gráfica decidiu deixar a Bahia e ia vender o ponto. “Eu não podia ficar desempregada de novo”, conta. Foi aí que ela decidiu alugar as máquinas e dizer para si mesma “Seja o que Deus quiser”, apostou. Agora, ela herdou os clientes e está conquistando novos. O próximo passo é entender como produzir camisas e copos.

 Amor e carinho “Criar duas filhas sozinha não é fácil. Eu custeio casa, alimentação, escola. E ainda tem que cuidar da casa, fazer comida, dar carinho. A principal dificuldade para mim é dar atenção para elas, sei que elas precisam, sempre me cobram. Mas eu chego sempre tão cansada… Quando vou dormir, coloco elas para dormir comigo porque é o tempo que eu consigo para conversar, para puxar um papo sobre o dia. Depois, pega no sono todo mundo junto”, conta. Thaianá e as filhas, Iverly, 10 anos, e Ianna, 4 anos (Foto: Marina Silva/CORREIO) Enquanto Thai está no trabalho, as meninas cuidam uma da outra. A mais velha dá banho na mais nova para irem para a escola. Ao meio-dia, Thai dá uma pausa na gráfica para almoçar com elas e levá-las na escola. Na volta, essa responsabilidade fica por conta da maior. De noite, a mãe as ajuda com as lições de casa. “Tudo vale a pena só de ver elas bem, mas sei que a minha filha de 10 anos força muito a maturidade me ajudando a tomar conta da pequena”, observa.

Thai aceitou convite do CORREIO, contou sua história e fez ensaio fotográfico. Ela teve dia de autocuidado no salão Sá Marina, na Pituba

[[galeria]]

Independência  A educadora Monique Pereira, 32, tem apenas uma filha de 9 anos e vive em condições parecidas em Paripe, no Subúrbio Ferroviário. Além de cuidar sozinha da menina, trabalha na ONG Lar Pérolas de Cristo, ajudando a tomar conta de crianças e adolescentes, em geral garotas, vítimas de violência sexual, física e psicológica, que são encaminhadas para lá pelo Ministério Público e Conselhos Tutelares. 

Ela conseguiu o emprego indo bater à porta da fundadora. Separada, Monique tinha voltado a morar com a mãe e vivia do Bolsa Família, na época menos do que R$ 100. Com esse valor, comprava os blocos para construir a própria casa. Há três anos com carteira assinada, a educadora terminou a obra e já iniciou outra: uma laje para montar um quarto para a filha, Beatriz. 

Ano passado, Bia pediu uma bicicleta no aniversário, em agosto, e Monique não conseguiu dar porque estava pensando no projeto maior, que era justamente o quarto. Refez a promessa para o Natal, mas também não conseguiu. Foi adiando e prometeu novamente para o Dia das Crianças deste ano. Monique diz que Bia representa tudo para ela. Se precisa fazer as unhas, só vai se no dia a filha não depender dos seus cuidados. “Meu foco é só ela, não consigo pensar em outra coisa. Eu terminei o meu casamento por brigas e traição, sabe? Hoje, não sinto falta de homem para me ajudar. Gosto de fazer o que eu quero, ser independente e viver sem ter que dar satisfações. Nós, mulheres, precisamos entender que a gente só precisa de homem se a gente quiser”. Monique e Bia (Foto: Arquivo pessoal)