Me respeite que sou do tempo da Lavagem do Porto da Barra

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  • Da Redação

Publicado em 31 de março de 2019 às 06:00

- Atualizado há um ano

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Foto: Francisco Galvão/Arquivo CORREIO A culatra, implacável no coice, tem sido meu destino infalível numa ânsia galopante em criar um estilo literário próprio. Sim, outro rumo não me cabe que não admitir, diante do fracasso de uma marca privativa para esta coluna, em remediar a contento -- modéstia às favas -- na habilidade em fabricar títulos dúbios, farsantes, mentirosos ou, pra ficar nos reclames da moda, temperados na fake news.

Das colunas assinadas por mim, entre uma alternada e outra, apelo sempre para o expediente de mentir descaradamente na manchete. Talvez seja esta minha sina e, como bom fatalista, talvez precise mesmo aceitar esse triste desígnio. O fato é que, há coisa de um mês, neste mesmo CORREIO, sapequei um “O Carnaval do Príncipe” em pleno domingo de folia antevendo a possibilidade de cliques adicionais sobre os desavisados que imaginassem se tratar de uma prosa sobre a pipoca de Igor Kannário. Pura cilada! Dediquei linhas e mais linhas acerca de um casamento acontecido lá no início do século XIX.

João Galdea, meu consorte na assinatura desta coluna, reclamou: “precisamos de títulos mais fortes, que despertem interesse do público”. O apelo me comoveu e, tendo alguém pra jogar a culpa, pendi mesmo para o obsceno embuste. “Me respeite que sou do tempo da Lavagem do Porto da Barra”.

Pura culhuda. Migué safado. Baratino indecente. Nunca fui na lavagem do Porto da Barra. Sou um folião tardio no Carnaval de Salvador e ainda mais moroso nas festas de largo célebres por aqui -- embora, em minha defesa, digo que tenho compensado o tempo perdido com fôlego juvenil, registre-se.

Mas o fato é que me apropriei mesmo da frase, transformada em propaganda enganosa, durante uma carona dada ao amigo Alex Rolim, numa terça-feira prévia ao último Carnaval. Tínhamos ido buscar a fantasia do Gandhy (ele em seu 20° ano de afoxé e, eu, em minha estreia). Ao contornar a curva da Paciência, no Rio Vermelho, ele largou assim: “você lembra quando o Carnaval de Salvador começava no Porto da Barra? Me respeita que sou dessa época”.

Dei uma risada bufa e disse que sequer sabia dessa lavagem. Guardei a informação e, passada a Quarta-de-Cinzas, fui pesquisar a respeito. E é depois desse sambarilove todo que efetivamente começa nossa história. Ao fim, ela também é uma queixa sobre nossa rasa memória e falta de preservação do passado.

Mas vamos segurar o espóiler. O primeiro milho sempre é dos pintos. Coreografia na areia em 22 de fevereiro de 1990 (Foto: Shirley Stolze/Arquivo CORREIO) Lavagem, corda e Dodô Em 1986, o Carnaval de Salvador não tinha Dodô ainda. Vejam vocês, esse negócio de trapacear é coisa séria demais. Você vai tomando gosto e começa a engabelar sem nem mais sentir a cara arder. Quase fui metendo uma culhuda novamente, até ser tomado por um providencial arroubo de consciência. Dodô, na verdade, já existia, sim. Junto com Osmar, eles criaram a fobica lá em 1950. Não existia ainda o circuito Dodô (Barra-Ondina).

Em meados da década de 1980, o carnaval de rua de Salvador se resumia ao circuito do Campo Grande e ao Pelourinho. Os clubes, como o Bahiano de Tênis e o Fantoches da Euterpe, ainda mantinham seus bailes e festas fechadas em reverência a Momo. Antes mesmo de Requebra, o povo já descia até o chão, em 15 de fevereiro de 1990 (Foto: Edson Ruiz/Arquivo CORREIO) Mas, há 33 anos, veio a primeira experiência de massa, aberta, positive-vibration, legalize, na Barra. Um grupo de jovens organizou a primeira lavagem do Porto. A inspiração, obviamente, era a lavagem do Bonfim, inaugurada em 1773. No entanto, a parte sagrada nunca foi copiada, restando apenas o meneio profano como inspiração.

A lavagem do Porto era na quinta-feira de Carnaval, por volta do meio-dia. A folia só era aberta oficialmente à noite, com a entrega simbólica das chaves. Mas desde cedo o dente era puído nos cascos de Kaiser, Brahma e Antártica (as preferidas à época) sobre patrulha de um inclemente sol forte. Trio no Porto em 22 de fevereiro de 1995; água pra refrescar a multidão (Foto: Claudionor Júnior/Arquivo CORREIO) Com o passar dos anos, a festa foi evoluindo. O ponto alto passou a ser o jato d’água despejado nos foliões-litorâneos por um caminhão-pipa, logo depois substituído por um da Limpurb, estacionado ali no Instituto Mauá, a postos até ser acionado para o esguicho, no ápice das comemorações. Como mostra a reportagem empoeirada abaixo, 'uma festa onde não faltavam loiras animadas cheias de amor pra dar'.

Começaram a vir os trios e os grandes artistas. Elba Ramalho, o cantor africano de reggae Nabby Clifford, Durval Lélis, Jorge Zárath, Gilberto Gil, Margareth Menezes, Olodum, Ivete (ainda na Banda Eva) foram algumas das estrelas que tocaram de frente pras águas mornas do Porto.

Os blocos Crocodilo, Adota Eu, Nana começaram a trazer seus potentes equipamentos. E, em 1988, com dois anos de lavagem, o bloco Bróder, percebendo o sucesso do evento, cercou a entrada do Forte São Diogo até o Grande Hotel da Barra para que seus irmãozinhos e associados ficassem em uma área reservada, longe do povão. O preço da regalia era Cr$ 300 cruzeiros (o que valeria hoje a R$ 11, convertidos). À esquerda, a folia no asfalto, em 14 de fevereiro de 96; à direita, a balburdia na praia, em 22 de fevereiro de 90 (Fotos: Edson Ruiz e Shirley Stolze/Arquivo CORREIO) Mesmo cercada de reclamações dos moradores, a festa foi resistindo como um marco inaugural dos festejos espontâneos ali na Barra. Durante uma década inteira, de 1986 até 1996, a lavagem roubou o protagonismo da festa oficial e demarcou trincheira como o abre-alas popular da patuscada baiana. Em 1988, como consequência direta desta lacuna aberta, os trios começaram a desfilar no Farol da Barra. Até que, em 1993, desceram da Avenida Sete até a Orla Marítima, inaugurando um novo circuito da festa à beira-mar.

Falta memória O fim da Lavagem do Porto começou em 1997. Pelo menos esse é o ano do último registro nos jornais dos quais me debrucei. Na ocasião, os foliões desceram a pirambeira para se preparar para aquela que seria a décima primeira edição do evento – que jamais aconteceu. Esta edição foi totalmente organizada pelo bloco Bróder. O trio que vinha para animar a festa, trazendo a banda Timbalada, quebrou o diferencial e não conseguiu chegar a tempo. Teve princípio de confusão e revolta pelo cancelamento. O Porto entupido em fevereiro de 1989 (Foto: Francisco Galvão/Arquivo CORREIO) Desde então, não há registros que a lavagem tenha existido nos anos seguintes. Mais grave que o fim da festa, que a tentativa de privatizar a mesma, é o esquecimento absoluto na qual a lavagem foi submetida. O melhor balizador para medir o quanto essa lembrança caiu no porão profundo da desmemória é um fato recente que aconteceu neste Verão.

Logo no início de janeiro de 2019, o DJ Maroca lançou um ‘Aquatrio’ para animar banhistas do Porto da Barra com suas caixas eletrônicas alojadas num caiaque.

A geringonça foi logo embargada por falta de licença.

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Nos poucos dias que a diversão durou não houve qualquer menção em sites, jornais, rádios ou TVs de uma festa que acontecia ali mesmo e praticamente redefiniu, despretensiosamente, os rumos do Carnaval de Salvador.

Ninguém lembrou.