Médicos peritos X INSS: aprenda com essa briga

Eles conhecem o comportamento suicida que boa parte da população tem apresentado e não vão arriscar suas vidas para aprovar benefícios

  • Foto do(a) author(a) Flavia Azevedo
  • Flavia Azevedo

Publicado em 20 de setembro de 2020 às 11:04

- Atualizado há um ano

. Crédito: .

Os médicos peritos se negam a retomar o trabalho presencial, nas agências do INSS, apenas por um motivo: eles são médicos. Isso significa que esses profissionais têm privilégios que a esmagadora maioria da população brasileira não tem. Entre eles, alta empregabilidade e conhecimento específico no tema "covid-19". Estes dois, associados, oferecem aos médicos peritos as condições de escolha que todas as pessoas deveriam ter. Só que não temos. Bem por isso, devemos observar, atentamente, essa briga. A primeira, desde que a pandemia começou, que vale a pena acompanhar de perto para aprender.

O governo federal tá tentando, mas não sei se vai adiantar ameaçar médico com corte de dia não trabalhado ou processo administrativo. Do outro lado da balança, esses profissionais sabem que está a vida. Sabemos que pode acontecer, mas a maioria das pessoas que se formam em medicina não vive em vulnerabilidade social suficiente para que seja refém desse tipo de situação. Se a pandemia, no Brasil, virou "tempo de murici, cada um cuida de si", nada mais compreensível do que médicos se negarem à exposição - própria, mas também dos usuários do serviço - em espaços e condições que, segundo eles, estão longe de garantir segurança para o exercício de suas funções.

Pra você, parece abusivo, elitista e tal? Entendo. Por pura falta de opção, nos apegamos àquela parte do hino que diz "um filho teu não foge à luta". Também acho bonita a ideia. Só que, ao longo do tempo, a palavra "luta", em nosso contexto, foi mudando de significado e eu acho ótimo quem pode não topar "humilhação" e "sacrifício", esses novos sinônimos de "luta" que a grande maioria precisa engolir. Não vejo beleza alguma em pessoas trabalhando sem condições básicas, em qualquer tempo. No meio de uma pandemia, isso me revira o estômago já tão castigado por muita coisa que se naturalizou em nosso país.

Médicos sabem que ainda não passou. Médicos sabem que o vírus está longe de ser controlado, principalmente no Brasil. Médicos sabem que as quase mil mortes diárias, por covid-19, não são admissíveis. Médicos sabem que, neste momento, aglomerações são contraindicadas, que filas e salas fechadas representam perigo, que o distanciamento social segue imprescindível. Médicos sabem de todos os riscos, dos EPIs necessários, da adequação que precisa ser feita nos espaços físicos, mesmo fora dos hospitais onde, contraditoriamente, parecem, agora, estar mais seguros. Por fim, eles conhecem o comportamento suicida que boa parte da população tem apresentado e não vão arriscar suas vidas para aprovar benefícios. Eu, sinceramente, também não iria.

(Até porque, de acordo com a Associação Nacional dos Médicos Peritos (ANMP), benefícios estão sendo liberados, de maneira emergencial, por análise remota documental, sem perícia médica, bastando, para isso, que seja apresentado o atestado médico ao INSS, de modo remoto ou presencial)

Sim, eles estão priorizando as próprias peles. Em vez de fazer a Candinha invejosa e repetir, maliciosamente, "eles podem", sugiro que todas as pessoas, na medida do possível, tentem aplicar isso às suas vidas. Essa briga é uma boa oportunidade para entender o que o Governo da Bahia e a Prefeitura de Salvador dizem desde o começo, por exemplo: comerciantes não podem decidir se abrem ou fecham comércios, durante uma pandemia. Não têm conhecimento pra isso. Da mesma maneira, não são as redes de cinema que devem apitar sobre a venda ou não de alimentos, em suas dependências. Muito menos, donos de escolas particulares ou educadores estão aptos a marcar a data de reabertura de instituições de ensino. Vivemos uma emergência em saúde. Em relação a protocolos, lockdowns e reaberturas, os profissionais da saúde são os únicos capazes de opinar e, precisamente, os que devem ser ouvidos. Estudaram, exatamente, pra isso.

Sim, há questões sociais importantíssimas. Que devem ser administradas por quem tem conhecimento, cargos e instrumentos para essa outra camada de uma crise que se prolonga, justamente, pelo nosso insistente comportamento suicida. Há seis meses - e contando -, vivemos o "auge da pandemia". Agora, sob o manto da normalidade com protocolos mais ou menos cumpridos, com tudo que é boteco encenando "biossegurança" e as pessoas acreditando. Ou fingindo.

Eu não creio que médicos voltem às agências no INSS, com protocolo de banco ou lojinha. Eles sabem que os critérios precisam ser rígidos. Você sabe identificar esses critérios? Tem certeza? Eu não. E não confio em leigos controlando ambientes, mesmo que usem luvas, máscaras e "viseiras". Tem um jeito certo - e difícil - de fazer isso. Sigo sem lugares fechados, sem bares, sem shoppings, sem academia. Podem reabrir à vontade. Tempos de murici, lembra? Eu cuido de mim. No meu próprio ambiente controlado. Sem expor a mim nem terceiros. Até isso passar de verdade. Na minha.

(Não preciso dizer, mas quero deixar claro: nessa briga, estou do lado dos médicos peritos)

(Tem componente político na postura deles? Dizem que sim. Mas, o que não é político nessa vida? A mensagem segue valendo e o fato é que o "componente prático" e indiscutível)