Meu encontro com o Pastor Sargento Isidório

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  • Da Redação

Publicado em 25 de junho de 2022 às 11:00

- Atualizado há um ano

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Há uns dez anos, por um acaso da vida, eu assumi o cargo de secretária de desenvolvimento social de um pequeno município da Bahia. Isso mesmo. De longe, a experiência profissional mais estranha que já tive. Fiz o melhor que pude, por intermináveis quatro anos. Tanto que acabei sendo bem avaliada pelas consultorias contratadas pelo prefeito de então. Posso provar. Uma delas, inclusive, sugeriu que eu fosse candidata a vereadora, pois era a secretária com menor índice de rejeição naquele mandato. Como dizem os pernambucanos, "já pensasse"? Eu mesma não. De consciência limpa, agradeço pelos aprendizados, ao tempo em que espero nunca mais ocupar qualquer cargo público e/ou de gestão. Muito menos ser chamada de "doutora" (no interior, qualquer coisa inspira esse tratamento) ou ser vista como "otoridade" em lugar algum. Definitivamente, não. 

Foi tenso. Tensíssimo. Mas mentiria se dissesse que não me diverti. Uma vez, ganhei um direito de resposta de 20 minutos, numa rádio local, e a entrevista, que durou mais de duas horas, foi dos maiores flows da vida. Outra vez, um vereador disse que eu não trabalhava. Me retei. Vara curta na onça que ainda amamentava, passava noites acordada com meu bebê e trabalhava pacaraio! Pois, levar a equipe inteira, na sessão seguinte, para entediar a todos explicando cada detalhe das ações da secretaria - inclusive o destino de cada centavo das verbas - , foi épico. Teve até DVD (com capa decorada) para que todos os "edis" pudessem levar pra casa e estudar direitinho. A rádio, a câmara, todos desistiram de mim e pude seguir com meu trabalho, em relativa paz. Um trabalho que incluía encontros com pessoas "importantes" que eu não fazia ideia de quem fossem. Entre elas, belo dia, um tale Pastor Sargento Isidório. 

Por mais esforço que eu faça, não consigo me lembrar dos nomes dos dois assessores dele que me esperavam e me conduziram até o gabinete do deputado estadual. Um homem e uma mulher. Antes, pessoas tinham me falado que o tale era "maluco", o que muito me animou. Ser chamado de "maluco" nesse meio, pra mim, sempre foi elogio. Eu mesma era chamada de "maluca" na pequena cidade onde fui secretária. Adorava o adjetivo. Especialmente, por saber que vinha de coisas como o fato de eu me vestir de forma muito simples ("inadequada" para "uma secretária"), não usar senhas no computador a mim destinado (cargo público, né?) e fazer questão de que meu "gabinete" vivesse de portas e janelas abertas para qualquer pessoa que chegasse (espaço público, sim?). Se ele também era "maluco", a conversa seria boa, pensei. 

Sala de espera. Comecei a desconfiar de que o tale era "maluco" de uma enfermaria diferente da minha quando apareceu um oficial de justiça procurando o deputado que não havia chegado ainda. Mas, não por isso. Problema é que quando o oficial saiu (tinha outras entregas, voltaria mais tarde), a assessora disse que achava um absurdo que o oficial de justiça se identificasse como oficial de justiça diante de todos pois isso poderia sugerir a possibilidade impensável de que o pastor & sargento & isidório cometesse qualquer ato ilícito o que era a mais absoluta e irrefutável mentira horrorosa. "Rum, ai, ai", suspirei internamente. Apoiadores, também na espera, balançaram a cabeça "que sim" e eu já fui praquele lugar interno cor de café com leite chamado "tédio" de onde o tale me tiraria minutos depois.

Chegou. Agarrado na Bíblia. De terno escuro. Me passou na frente de todo mundo. Me botou sentada na cadeira dele. Na frente do computador dele. Sentou na cadeira destinada a visitantes. Mostrou a Bíblia. Disse coisas que eu não entendi. Mostrou a Bíblia de novo. Disse mais coisas que eu não entendi. Não fixava o olhar. Eu tinha certeza de que ele não fazia a menor ideia de quem era aquela mulher sentada no lugar dele, no caso, eu. Muito menos sabia que município eu deveria representar. Me falou pra esperar. Que eu ficasse à vontade (isso, entendi). Foi embora agarrado na Bíblia, dizendo mais coisas desconexas. 

Eu, realmente, não sabia o que era pra fazer ali, naquele dia, com aquela pessoa. Ele também, claramente, não sabia o que era pra fazer. Em nenhum lugar. Em nenhum dia. Com nenhuma pessoa. Eu queria ir embora. Eu tava chateada de ter desperdiçado o combustível do município. E o tempo da equipe. Eu só queria que chegasse a hora do almoço. Eu só pensava em comer muito e dar risada com "meu assessor" que tinha ficado do lado de fora e não ia acreditar na cena, quando eu contasse. Definitivamente, o pastor & sargento & isidório era "maluco" de uma outra categoria. Não havia um canal de comunicação possível entre nós.

Num ato de desespero, minutos depois de ser convidada a esperar sentada no lugar do deputado, dei um pulo da cadeira e disse que precisava falar, urgentemente, com outro deputado. Sendo que eu não conhecia nenhum outro deputado. Peguei minha bolsa, saí quase correndo, não achei "meu assessor", e abracei uma amiga que, por milagre, encontrei no caminho. Lembrei que eu tinha uma amiga deputada, essa outra amiga trabalhava com ela. Quando eu disse que estava ali pra encontrar o pastor & sargento & isidório, a amiga deu uma gargalhada de perder o ar. Não sei se pelo fato, pela minha cara, pelo jeito que falei do meu encontro ou se pela minha mão beliscando o braço dela enquanto eu dizia baixinho "o que é aquilo, pelamordedeus?", com risadinhas histéricas. 

Ela ria cada vez mais e me contou da sessão em que o tale defendeu a proibição do exame de próstata. Eu achei que ela tava tirando onda com a minha cara. Ela jurou que era verdade, apontando pro lugar e me disse o dia da plenária na qual todos riram copiosamente, segundo ela. Eu devia estar em estado de choque porque não lembro de como me despedi dessa amiga e fui parar no restaurante, outra vez acompanhada pelos benditos assessores do pastor & sargento & isidório que me acharam de novo, não sei como. Um homem e uma mulher, dos quais não lembro nomes. Eu me sentia o próprio Mister Bean. Tenho esse sintoma de ficar muito, muito atrapalhada quando a situação é estranha demais pra mim. Era o caso. 

Enquanto eu tentava pegar alguma coisa pra comer na fila do "serve-serve", a assessora, que estava na minha frente, me olha e diz: "você precisa conhecer o trabalho maravilhoso que ele faz com drogados, na clínica". Quase alcançando o peito de frango à milanesa, ainda escutei "Doutor Jesus". Dei risada - e achei que seria com ela - do fato de ela dizer "Doutor Jesus" que achei ser uma referência metafórica à inspiração do pastor & sargento & Isidório. A criatura, seríssima, me diz "é o nome da clínica". Eu: "ahhhhh, tá". 

Àquela altura, eu queria era uma boa cachaça, pra falar a verdade. Mas tava trabalhando, por mais estranho que fosse associar a palavra "trabalho" aos fatos em curso. Portanto, a ideia era comer muito e ficar de boquinha calada. Devo ter misturado sushi com linguiça e farinha pra preencher o vazio daquele momento e impossibilitar a mim mesma de dizer o que eu pensava. A assessora, por sua vez, deve ter comido pouco, pois falava bastante e animadamente sobre a tale clínica para onde eu deveria enviar todos os "drogados" que, porventura, aparecessem lá na secretaria do pequeno município onde eu era secretária. E até algum que eu cruzasse, por acaso, no shopping, na farmácia, no pet shop, no teatro, na ficção ou na vida real. Todos seriam curados. "Meu assessor" ria de canto de boca e me olhava, certamente imaginando as nossas conversas no trajeto de volta pra casa. 

Foram duas horas de gargalhadas na estrada. "Meu assessor" me contando do negócio do botijão de gás, do negócio de ser "ex-viado", que foi "curado" por Jesus. Das "palestras" que o tale dava na "clínica" segurando um cacetete (ou era um pedaço de pau) que tinha até nome. A gente ria muito ao associar a palavra "cura" ao tale. Sobre a "clínica", eu pensava que não ia dar em nada. Eu contei da tentativa de proibição do exame de próstata e a gente ria mais, mais e mais. Concluí que foi uma pegadinha do prefeito me mandar para a tal "reunião" impossível, porque ele não ia perder o tempo dele lá. Secretário também serve pra isso, mas dextá. Achei que ele ia rir comigo assim que eu chegasse e que o pastor & sargento & Isidório era um desses personagens que aparecem na política porque o povo vota no mais absurdo que tem, só pra protestar. 

Depois é que eu fui estudar e entender quem era o tale deputado. E a trajetória. E a "clínica" que, evidentemente, nunca indiquei para nenhum usuário, até porque não sou psiquiatra e há encaminhamentos internos, dentro de um município, até que profissional habilitado chegue à conclusão de que se deve sugerir - ao enfermo e à família - internar. Muito depois fui apresentada aos "métodos" da Doutor Jesus com mais profundidade. Isso, que o Fantástico denunciou com detalhes, estava à disposição de quem quisesse ver, no YouTube, há anos. 

Naquela época, não imaginei que aquele cara conseguisse avançar na política, nem por voto de protesto. Ao longo do tempo, percebi que iguais a ele há aos montes e eleitos para vários mandatos. Chegam até aos mais altos cargos. E ele tá aí, é o fato. Há quase dez anos, eu ri pra caramba daquele circo todo. Agora, vendo as provas dos maus tratos aos internos da tale clínica e assistindo à matéria do Fantástico - que, entre outras coisas, denuncia 84 milhões de verba do Governo da Bahia enterrados nesse lugar -  fico pensando, aqui comigo: em que momento isso, realmente, teve graça?

*Flavia Azevedo é articulista do Correio, editora e mãe de Leo