Meu nome é Felicidade: conheça as histórias de quem leva a alegria no nome

Nome está quase 'em extinção': no último Censo, eram 17 pessoas em Salvador

  • Foto do(a) author(a) Thais Borges
  • Thais Borges

Publicado em 29 de março de 2019 às 04:10

- Atualizado há um ano

. Crédito: De acordo com o IBGE, 17 pessoas se chamam Felicidade em Salvador (Fotos: Marina Silva e Betto Jr/CORREIO)

Antes de Enzos e Valentinas dominarem as listas de nomes mais comuns para bebês, os futuros pais tinham outras formas de escolher como chamariam seus rebentos. Um dos jeitos era justamente homenagear a santa ou o santo do dia do nascimento. Numa dessas, a criança poderia ser Fátima, Mônica, Silvestre... Ou poderia levar contentamento até no nome, sendo batizados de Felicidade. 

Os felizes até no nome não são muitos. Segundo os últimos Censos Demográficos, o nome Felicidade está quase “em extinção” na Bahia. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), no recenseamento de 2010, 102 pessoas disseram se chamar assim – desse total, 101 eram mulheres. 

CLIQUE AQUI E CONFIRA ESPECIAL 'FELIZ-CIDADE' SOBRE OS 470 ANOS DE SALVADOR 

Em Salvador, 17 pessoas informaram esse nome em 2010 – sendo 16 mulheres. A época em que o nome foi mais popular no estado foi justamente na década de 1950, quando nasceram 24 pessoas chamadas Felicidade. De fato, tem Felicidade registrada em cartório, mas também tem Felicidade batizada – ou batizado, no caso – pela vida.

A escolha de um nome, de acordo com a psicanálise, pode trazer todas as demandas que os pais têm para os filhos, como explica o psicólogo e psicanalista Cláudio Melo, da Clínica Holiste. Toda criança já vem ao mundo em um contexto de demandas dos genitores – seja por realizações próprias, seja por frustrações. “Mesmo que você não escolha um nome como Felicidade, todos desejam felicidade para os filhos. Mas, muitas vezes, o nome representa exatamente essa expectativa que está se colocando para o filho”, explica Cláudio. O problema é que uma escolha como essa pode ser positiva ou negativa. Ou seja: batizar uma filha ou filho de Felicidade pode, se fato, ajudar a criança a traçar um caminho para uma vida plena ou pode ser justamente o inverso. As consequências, nesse caso, podem ser devastadoras. 

“Se a pessoa está muito presa às demandas dos pais, pode ficar num imperativo para ser feliz a qualquer curso. Toda vez que ela não alcançar, pode se frustrar e gerar uma situação de descontentamento”, diz o psicólogo. 

O CORREIO encontrou duas pessoas que atendem por esse nome. As duas garantem que a felicidade não está só no nome. 

Felicidade no cartório  Em casa, é Cacilda para cá, Cacilda para lá. Entre os irmãos, não tem quem chame a professora do Instituto de Cegos da Bahia pelo nome verdadeiro: Felicidade da Silva Santos, 50 anos. Nos últimos tempos, a pedagoga até vem tentado fazer uma campanha para ser chamada de Felicidade – pelo menos, entre as crianças da família, sobrinhos e sobrinhos-netos.  Felicidade foi nomeada assim em homenagem à santa homônima; ainda hoje, é católica e cursa Teologia (Foto: Betto Jr./CORREIO) Há uma explicação: a mãe de Felicidade escolheu Cacilda. Desde a gravidez, queria que a filha fosse Cacilda. Só que o calendário tinha outros planos. Felicidade nasceu depois das 23 horas do dia 6 de março de 1969, depois que a mãe entrou em trabalho de parto e precisou correr para o hospital. 

Quarta de cinco filhos, deveria ter nascido no Hospital da Sagrada Família, como os outros irmãos. No entanto, por algum motivo, a instituição não pôde atender a família. O pai e a mãe, prestes a parir, foram parar no Hospital Santa Izabel. “Nasci apressada, praticamente na mão do meu pai. Ele fala que a equipe teve que descer para conseguir me segurar, porque, nesse deslocamento de um hospital para o outro, eu já apontei para nascer”, conta. 

Por ser quase dia 7 de março, uma amiga da família fez uma ressalva ao pai da professora: era praticamente o dia de Santa Felicidade. Segundo a tradição cristã, Felicidade era serva de Perpétua, também santa do dia 7 de março. Felicidade estava grávida de oito meses quando foi presa por seguir o cristianismo.“Perpétua e Felicidade morreram testemunhando o amor a Jesus Cristo. Minha mãe não gostou (da mudança de nome), mas eu gosto muito. Pelo significado, pela história, porque acredito que ser feliz é conhecer Jesus. Por isso, dentro das minhas concepções, felicidade é amar a Deus”, diz a pedagoga, que é católica praticante.Seja por destino ou não, a fé é tão presente na vida dela que, este ano, Felicidade começou a estudar Teologia na Universidade Católica de Salvador (Ucsal). Queria conhecer mais do sagrado. 

Seria clichê dizer que Felicidade alegra os lugares por onde passa – mas não seria mentira. No Instituto dos Cegos, ficou conhecida como a Deusa do Ébano, por ter desfilado, por muitos anos, no Ilê Ayê. Quando se apresenta, é uma festa. Já se acostumou às brincadeiras com o nome. 

“É muito bom você chegar em um ambiente e ver que as pessoas se alegram com a sua chegada. É muito divertido nas relações sociais, porque as pessoas que me conhecem pouco brincam. Mas são brincadeiras sempre agradáveis”. 

Formada em Pedagogia há 19 anos, conheceu a educação especial em uma disciplina prática, nos tempos de faculdade. Participou de algumas formações e, naquele contexto, se sentiu motivada. Como já era professora da rede estadual, pediu remoção para o Instituto de Cegos. 

Lá, aprendeu a se desafiar mais. Quis ultrapassar limites – os dos alunos e os seus próprios. “Muitas vezes, uma criança ou um adolescente chega com um conceito equivocado de si, da vida, como se a cegueira impusesse limites maiores. Mas o limite é só não enxergar com um órgão”, analisa. 

Foi em 2017 que a tristeza tentou aplicar um dos golpes mais fortes em sua vida. Naquele ano, foi surpreendida pela explosão de um aneurisma cerebral. Felicidade teve que ser submetida a uma cirurgia de emergência e descobriu que tinha um quadro incomum: múltiplos aneurismas. Fez três cirurgias no crânio. Hoje, os exames mostram que não há mais nenhum. Se recuperou sem sequelas e sem lesões. 

Divorciada há 12 anos, não teve filhos. Diz nunca ter entendido o motivo para não ter conseguido engravidar, mas, hoje, pensa em casar de novo. Não só casar, mas amar “mesmo”, em suas palavras.“Penso em viver uma única carne, no sentido de ter cuidado com o outro. Foi por falta disso que meu casamento foi considerado nulo pela Igreja (Católica). A Igreja entendeu que ele não se abriu para o amor, para a vida em comunhão”, diz. Não havia violência física, mas, como ela mesma destaca, nem todo tipo de agressão é físico. Naquela mesma época, a mãe sofreu um Acidente Vascular Cerebral (AVC). Vive acamada desde então. 

Mesmo com alguns entraves, ela nunca se consideraria infeliz. Nem mesmo quando os aneurismas a assustaram, a resposta teria sido diferente. Para Felicidade, foi o momento em que se sentiu amada – por Deus, pelos amigos, pela família. “A felicidade está no ato de amar, no viver o amor. Pude conquistar tudo isso pelo amor”. 

Na vida, nunca se deparou com uma xará. Já encontrou gente que dizia conhecer uma Felicidade, mas não passava daí. 

Batizado pela vida  Com o músico e funcionário público Zenildo de Jesus, 50, a situação é inversa. Não deve ter uma única alma viva que, hoje, o chame assim – como está em sua certidão de nascimento. Desde os 11 anos de idade, foi como se Zenildo tivesse assumido outra identidade: e, de lá para cá, o nome dele é Felicidade.  Nas redes sociais, a alegria parece ser em dobro: o músico, que foi baterista e um dos fundadores da banda Terra Samba, assina ‘Felicidade Feliz’.

"Começaram a me chamar assim porque eu participava de um grupo de igreja, toda a minha vida. Mas aprendi a tocar violão cantando uma música chamada Felicidade”, conta, referindo-se à canção famosa na voz de Caetano Veloso.  Felicidade nasceu Zenildo, mas ninguém o chama assim (Foto: Marina Silva/CORREIO) Isso foi justamente aos 11 anos de idade, quando morava em Pernambués.  Para todo lugar que ele ia com o violão, só tinha Felicidade no repertório. Não sabia mais nenhuma música.“Tínhamos uma barbearia onde reuníamos com todos os músicos do bairro para tocar violão. Eu aprendi para não ficar para trás, mas, quando eu chegava, chamavam: ‘E aí, Felicidade?’. Pegou”, lembra. Como acabou se profissionalizando na música, não teve como se desvencilhar do novo nome. Nem se quisesse conseguiria não ser conhecido como Felicidade – especialmente, na época do Terra Samba, onde ficou até 1999. Desde 2000, é técnico administrativo do Complexo Hospitalar Universitário Professor Edgard Santos (Hupes), da Universidade Federal da Bahia (Ufba). 

Até no trabalho administrativo, os colegas o conhecem por Felicidade.“Para mim, esse é meu nome”, explica. Atualmente, toca em um grupo que é “dissidência” do Terra Samba – o Aro 7. Pai de três filhos adultos, não é casado. Também nunca conheceu outra ou outro Felicidade; apenas uma família cujo sobrenome era esse. 

Diz que, dentro de suas possibilidades, se considera feliz. “Não me arrependo de nada. Mesmo com a fama do Terra Samba, na época daquela febre toda, nunca abandonei minha origem, meus amigos. Por isso, me considero feliz para caramba”, garantiu.