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Paulo Sales
Publicado em 15 de março de 2021 às 05:00
- Atualizado há 2 anos
Às vezes, quando vai alta a madrugada e me pego sozinho olhando a rua, a última taça de vinho à espreita, me deparo com o meu próprio desalento. Ou melhor: com o nosso desalento coletivo. Uma sensação de que o mundo vai aos poucos nos abatendo, nos vencendo pelas sucessivas estocadas em nossas costas, como um toureiro persistente. Apalermados pela brutal realidade cotidiana que nos apavora e entorpece, nos tornamos touros exaustos à espera da espada entre os cornos.>
Por sorte somos animais duros, traquejados, e queremos continuar vivos. Afinal, existem momentos que fazem a vida ser uma dádiva. Eu mesmo me pego extasiado ao contemplar o sol sumir no mar, ao observar minha filha passeando com Pudim, ao ouvir uma canção de Leonard Cohen. Seria – e é – o suficiente para viver em plenitude. Mas, infelizmente, não estamos imunes à violenta opressão da realidade. Não há invólucro capaz de nos tornar invulneráveis, e é isso o que mais tememos.>
Repisando a tragédia como um mantra, é como se eu me purgasse da dor dos outros, mitigando o temor de um dia também ser vítima. Uma crônica como esta – e tantas outras que venho rabiscando nos últimos meses – me ajuda nesse processo de penitência. Absorvo o mundo à minha volta como um mata-borrão, uma esponja, e me sinto desorientado diante da guerra civil em que estamos embrenhados. Não me reconheço no meu país, não me reconheço no meu tempo.>
Mas cabe aqui uma autocrítica: qual a minha real contribuição para reverter esse cenário? Na prática, nenhuma. Nada além de manifestar minha indignação em gestos de irritação estéril. Nada além de praguejar contra o mundo, sentado confortavelmente à frente de uma tela de computador. De certa forma, invejo quem segue seu curso incólume diante da desgraça alheia. Pois de que serve a minha compaixão, se ela não tem serventia?>
O sofrimento chega até mim filtrado, ultraprocessado pela televisão. Meu temperamento contemplativo e minha letargia não permitem que me torne um ativista implacável, em eterno combate contra as aberrações do meu tempo. Um vigoroso missionário do Exército da Salvação, da Cruz Vermelha ou dos Médicos sem Fronteiras, capaz de rodar o mundo para pôr as mãos na massa amorfa da miséria, revirá-la, sentir a sua textura áspera e por fim desfazê-la em pó. Ser um Júlio Lancelotti, uma Zilda Arns.>
O que me consola, na minha insignificância e no meu imobilismo de autor menor, é saber que o mundo nos deu autores maiores, capazes de dissecar o mal do mundo para em seguida torná-lo menos rude. Como o uruguaio Mario Benedetti, que há 40 anos descreveu à perfeição o que estamos vivendo hoje:>
“Todo esse terremoto nos deixou mancos, incompletos, parcialmente vazios, insones. Nunca mais seremos o que éramos antes. Melhores ou piores, cada um saberá. Por dentro, e às vezes por fora, uma tormenta passou sobre nós, um vendaval, e essa calma de agora tem árvores caídas, telhados desmoronados, terraços sem antenas, escombros, muitos escombros. Temos que nos reconstruir, é claro: plantar novas árvores, mas talvez não haja nos hortos as mesmas mudas, as mesmas sementes.”>