Moradores que deixaram casas relatam susto após chuva: 'Pelo menos estamos vivos'

390 pessoas dormiram em sete pontos de acolhimento da prefeitura

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  • Tailane Muniz

Publicado em 27 de novembro de 2019 às 15:59

- Atualizado há um ano

. Crédito: Mauro Akin Nassor/CORREIO

Sob o teto seguro da Escola Municipal Coração de Jesus, na Baixa do Cacau, região periférica de Salvador, a auxiliar de cozinha Luciana Dias Alves, 53 anos, comenta aliviada: “Pelo menos estou viva”. Foi na instituição que ela, quatro filhos e três netos encontraram abrigo depois que a casa da família, na localidade de Santa Luzia, no Lobato, foi parcialmente atingida por um deslizamento.

A camada de terra cedeu em decorrência da chuva torrencial que, nesta terça-feira (26), fez com que a Defesa Civil de Salvador (Codesal) acionasse - pela primeira vez - dez das 11 sirenes instaladas em áreas de risco da cidade. Ao menos 390 dormiram em cinco escolas municipais, uma associação e uma igreja [ver lista abaixo]. 

Os abrigos foram improvisados por 15 equipes da Secretaria Municipal de Promoção Social de Promoção à Pobreza (Sempre), próximo às localidades que concentram o maior número, de um total de 420 ocorrências registradas até às 21h, de acordo com a Codesal: Baixa de Santa Rita, em São Marcos; Calabetão; Bom Juá, na Fazenda Grande do Retiro; Vila Picasso, na Capelinha; Baixa do Cacau, em São Caetano.

Além de Moscou, na Vila Canária; Mamede I e II, no Alto da Terezinha; Bosque Real, em Sete de Abril e Santa Luzia - onde a auxiliar Luciana mora há 20 anos. Ela cozinhava no momento em que ouviu soar a sirene, por volta do meio-dia. À reportagem, conta que, dessa vez, não teve jeito senão sair.  Dona Luciana e os filhos: casa parcialmente atingida por deslizamento (Mauro Akin Nassor/CORREIO) “Já tocou antes, e não saímos. Ontem, quando cheguei da cozinha, nos fundos, e vi a terra descendo mais e mais, peguei os meninos e vim”, disse, na manhã desta quarta-feira (27).Com os filhos e netos, a auxiliar de cozinha chegou até a Escola Municipal Coração de Jesus, que abrigou 26 pessoas de oito famílias. Todos vizinhos, amigos ou conhecidos. Luciana comemora ter acordado com vida, mas lamenta, contudo, que o marido tenha decidido ficar. “Ele disse que não ia deixar para trás tudo o que temos”, diz ela, que não perdeu móveis ou qualquer bem material.

‘Noite boa’ E a noite foi boa, pontua Luciana, enquanto dobra os lençóis e enfileira os colchões em uma das salas de aula da unidade escolar. Ela explica que, embora esteja fora de casa, “o valor da vida é o mais importante”. “Nós encontramos abrigo, temos que ser gratos por isso”. Conta que logo que chegou no local, foi alimentada e recebeu assistência psicológica de servidores da Sempre.

“Fomos muito bem tratados. A noite foi boa, melhor do que muitas que eu já passei em casa, em claro, esperando parar de chover. Ou então, torcendo para a terra não cair”, resume ela, em tom de alívio. Agora, acrescenta, é esperar que o tempo melhore. Afirma que só volta se “não tiver risco de morte”. 

Como o imóvel ainda não foi condenado pela Codesal, ela aguarda o diagnóstico para decidir o que fazer. A depender do que seja constatado pelos engenheiros do órgão, as famílias passam a ter direito ao auxílio-moradia. Enquanto isso, Luciana já decidiu que vai com a família para a casa de uma prima, também em São Caetano.

Secretária de Promoção Social, Ana Paula Matos disse ao CORREIO que as assistentes sociais seguem instruindo as famílias. “Nós direcionamos uma equipe para casa escola, em alguns casos, mais de uma. Ao todo, foram 442 colchões, além de cestas básicas direcionadas aos acolhidos”, pontua Ana, ao destacar que, no total, 884 pessoas foram cadastradas pela equipe - ou seja, receberam algum tipo de assistência.

Atualmente, de acordo com o prefeito ACM Neto, a prefeitura concede o auxílio-moradia a 2.125 pessoas que, de alguma maneira, já foram afetadas por chuvas. Segundo o gestor, R$ 10 milhões estão investidos para o benefício, além de mais R$ 869 mil de indenização por perda de bens. Ônibus trafega com dificuldade em meio ao alagamento (Foto: Arisson Marinho/ CORREIO) ‘Desespero’ Se pudesse, moraria em outro lugar, afirma. Mas as condições de quem tem uma renda mensal de R$ 250, no entanto, faz com que a dona de casa Denise Santos Reis, 53, more há 15 anos em um imóvel já condenado pela Defesa Civil. 

O perigo da casa não é cair, mas acabar soterrada, explica ela, ao acordar na instituição municipal. Vizinha de porta, ela dividiu o mesmo quarto com Luciana e a família. Denise mora há 15 anos em imóvel condenado (Foto: Mauro Akin Nassor/CORREIO) Afirma que quando ouviu o alarme, estava no banheiro. “Ia ser a primeira a morrer, se tivesse caído com força a terra. Sorte que conseguimos sair”, diz, em referência aos dois filhos, de 17 e 12 anos, que passaram a noite da casa da filha mais velha de Denise, na Estrada Velha de São Caetano. “Olha, é muito triste passar por isso, bate o desespero. Mas é mais triste para pessoas que não têm nem para onde ir. Ao menos, tivemos essa noite tranquila, com alimentação, lençol e bom tratamento”.  A situação foi acompanhada pelo secretário municipal de Educação, Bruno Barral, que visitou três, das cinco unidades que serviram de abrigo após as chuvas. “É um momento em que a gente precisa ser solidário. Nossa gestão é harmoniosa. Nossas secretarias trabalham integradas para que tudo funcione bem”, disse ao CORREIO.  

Bruno acrescenta ainda que as 430 unidades municipais estão à disposição da população, à medida que ocorrer necessidade. Nesta terça, só na Coração de Jesus - unidade que realizou o maior número de cadastros sociais - 411 pessoas, de 56 famílias, receberam algum tipo de auxílio, segundo a equipe de assistência social da Sempre. Secretário Municipal da Educação Bruno Barral visita escola na Baixa do Cacau (Foto: Mauro Akin Nassor/CORREIO) ‘O despertar’ Mãe de três, a boleira Lorena Fabiane Freitas, 38, não contém as lágrimas ao comentar o momento em que deixou para trás a casa em que viveu por nove anos. Para nunca mais voltar, garante. Não foram poucas as vezes que ela até considerou sair, lembra. 

Por fim, contudo, sempre terminava por ficar e continuar a vida como se não morasse em um imóvel cuja estrutura está construída sobre um barranco, na Ladeira do Cacau, em São Caetano.

“Eu ficava com medo sempre que chovia, mas a verdade é que depois que passa o momento crítico, a gente esquece e segue a vida. E hoje estou aqui”, resume, em um dos quartos improvisados. À reportagem, Lorena disse que, dessa vez, teve mais medo do que das outras - as quais ela não soube precisar data e quantidade.  Lorena chora ao lembrar de casa: 'hoje estou aqui' (Foto: Mauro Akin Nassor/CORREIO)  “Na madrugada de ontem, já chovia muito. Fiquei em alerta. Mas aí a sirene tocou e vi muita gente saindo, saí junto”, conta ela, que mandou os pequenos, de 9, 10 e 12 anos para a casa de uma amiga, no mesmo bairro.

Lorena saiu com a roupa do corpo. Deixou para trás “o fruto de tantos anos de batalha”. O que considera como a maior dor. “É triste demais você ter uma vida, estar adaptada a ela e, do nada, precisar começar do zero. Deixar sua casa, suas coisinhas… em nome da vida, não deixa de ser, pela minha e de meus filhos. Mas o despertar é difícil. Acordar fora de casa é difícil”.

Solidariedade Diante do cenário, o pastor Gleidson Portela, anfitrião da Igreja Batista da Capelinha de São Caetano há 11 anos, decidiu abrir as portas do templo evangélico. Morador da Fazenda Grande, soube pelo WhatsApp da situação das pessoas da localidade, algumas frequentadoras da igreja.

“Me desloquei imediatamente para cá. Como as equipes da Codesal já estavam aqui, nós organizamos tudo e trouxemos todo mundo que quis vir”. Lá, segundo a secretária da Sempre, Ana Paula Matos, 75 adultos e 57 crianças passaram a noite. Esta manhã, Gleidson acompanhou a situação dos acolhidos. “Já aconteceu em casos de violência, mas nunca em situação de chuva. Foi algo que impactou muita gente”, recorda. 

Moradora da Vila Picasso, uma das regiões mais críticas de São Caetano, a dona de casa Gilneide Souza, 47, comemora a “noite tranquila”. Evitou pensar muito no que deixou para trás: a casa que ameaça cair, há poucos metros dali. Ouviu a sirene soar, da janela do quarto, por volta das 11h e não teve dúvida: era a hora de abandonar a casa onde mora há nove anos. Gilneide: noite tranquila na igreja (Foto: Mauro Akin Nassor/CORREIO) O marido continuou no local, a contragosto da dona de casa, que torce: “Sinceramente, espero que esteja tudo bem com ele. Mas voltar para lá, quem não volta sou eu”. Em poucas palavras, resume o maior desejo atual: “Ser contemplada com o auxílio moradia, alugar um lugar seguro e continuar a vida”.

Onde as pessoas receberam acolhimentoIgreja Batista, na Vila Picasso | 75 adultos e 57 crianças Escola Municipal Coração de Jesus, Baixa do Cacau, Lobato | 14 mulheres, 1 idoso e 11 crianças Escola Municipal Santa Terezinha, Mamede, Alto de Terezinha | 26 adultos e 9 crinaças Escola Municipal Eufrozina Miranda - Voluntários da Pátria, Lobato | 79 adultos e 48 crianças  Escola Municipal Alexandre Leal, Gravatá, Centro | 20 adultos e 3 crianças Associação de Moradores do Novo Arvoredo, Tancredo Neses | 6 adultos, 12 crianças e 1 adolescente Escola Municipal Manuel Francisco Sussuarana | 15 adultos e sete crianças