Mozart bem Bahia: tenor baiano inspira novas gerações no canto lírico

Destaque na edição 2022 do Prêmio Maria Callas, Carlos Eduardo Santos está no elenco da ópera A Flauta Mágica

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  • Vinicius Nascimento

Publicado em 13 de julho de 2022 às 06:00

. Crédito: Foto: Paula Fróes/CORREIO

Morador da Liberdade, o jovem Carlos Eduardo Santos acompanhava a mãe, Algiza, nos ensaios semanais do coral que ela participava na ONG Budista frequentada pelos dois. E achava encantador como aquele tanto de vozes diferentes funcionava tão bem juntas. O menino, com seus 10 anos, achava mágico como a maestrina Célia Rodrigues conseguia coordenar todas aquelas pessoas e seus tons diferentes numa mesma canção. Ali, uma paixão foi despertada. E foi o ponto de partida para formar uma das grandes vozes do canto lírico da Bahia.

Hoje, aos 37 anos, Carlos Eduardo Santos é tenor, foi finalista e premiado entre cantores latinoamericanos e brasileiros da 20ª edição do Concurso Brasileiro de Canto Maria Callas, já cantou ópera até em trio elétrico, dividiu palco com Gilberto Gil e levou seu canto por mais de 5 países da Europa em excursões em  Portugal, Itália, França e Finlândia são alguns exemplos.

A partir desta quinta-feira (14), ele será um dos protagonistas da ópera A Flauta Mágica, adaptação da obra de 1791 de Wolfgang Amadeus Mozart, com libreto de Emanuel Schikaneder, que vai entrar em cartaz no Teatro das Mercês, no Centro, a nova casa da música lírica na Bahia. A direção musical e cênica é do maestro Aldo Brizzi e a montagem  fica em temporada até a próxima semana, com ingressos custando R$40 | R$20.

Ouvindo tudo isso e começando a contar a história a partir da infância, é de se imaginar que Carlos Eduardo começou a se profissionalizar cedo - o que é um engano. Até ele se encontrar e aceitar que seu caminho era na música, passou por duros percalços numa trajetória que envolveu o enfrentamento ao etarismo e racismo. 

É estranho ouvir, mas quem entra numa faculdade aos 26 anos, como foi o seu caso quando ingressou na Ufba, já é considerado 'velho'. 

"Na adolescência, comprava cds que vinham junto a revistas como Caras, Contigo, Esso. Ficava fascinado naquele trem. No lado de música vocal, não me interessava por ópera ou canto solista. Sempre estava em coral, a voz que fazia sentido no conjunto, nunca solo. Embora, desde os 15 anos faço solo dentro do coro. Achava ópera algo estranhíssimo, uma gritaria retada", sorri enquanto pensa na ironia do destino. Carlos Eduardo deixou um emprego convencional para apostar na música em 2011, quando começou a adoecer repentinamente (Foto: Paula Fróes/CORREIO) Em 2010, foi aprovado para trabalhar no Coro do Teatro Castro Alves e ali teve os primeiros contatos com música erudita para corais, que já eram um fascínio. Depois de alguns cursos de extensão na área musical e da indefinição e sofrimento em não seguir carreira na área de finanças, na qual atuava, veio o alerta de um amigo: “Você tem que trabalhar com alguma coisa que te faça levantar feliz da cama para trabalhar segunda-feira”. A resposta demorou quase um ano para chegar. E era a música. 

Passou no vestibular da Ufba em primeiro lugar e enfrentou todas as dificuldades para se formar. Largou o antigo emprego e se virou nos 30 para conseguir segurar a peteca durante os anos de graduação. "O fato de ocupar esses espaços, cantar em 5 idiomas, é revolucionário e mostra que é possível. Não é fácil, mas é possível. Tive uma grande alegria neste ano, fui o primeiro baiano premiado no Maria Callas e quando saiu uma crítica minha numa revista especializada, não falaram que era um cantor negro, nordestino, falaram que é um cantor da Bahia com x, y e z habilidades musicais. Eu gosto de não ser visto pelo exotismo", disse Carlos Eduardo. No entanto, ele assume que o fato de ser um homem negro e nordestino fez com que  precisasse utilizar da excelência como uma maneira de proteção. “Há cantoras e cantoras negras com talento, vocação igual ou melhor do que pessoas de qualquer tipo de pele. A gente pode usar isso a nosso favor e quando posso, eu uso, mas quando as pessoas ultrapassam a barreira do exótico é um grande triunfo. Mas é fato que você tem que se empenhar um pouco mais porque o que chega primeiro é o olhar conservador sobre sua imagem. Você tem que ser fera e chegar chegando. Eu sempre fui CDF, isso é um mecanismo de proteção”, reforça.

Ele também acredita que estar nesses lugares e contar histórias como a de dividir trio elétrico com Daniela Mercury, cantar com Gilberto Gil e dar vida ao príncipe numa montagem escrita por um músico austríaco pode inspirar novas gerações de meninos, que, assim como ele, podem estar por ali na Liberdade se apaixonando por música clássica e ainda não sabem muito bem que podem ser protagonistas de novas gerações da música erudita ao redor do mundo.

A Flauta Mágica: mistura de comicidade e  filosofia

O próximo desafio de Carlos Eduardo é o de dar a vida a Tamino, um príncipe que chega numa terra desconhecida e dá de cara com a Rainha da Noite (Flávia Albano), antes de se apaixonar pelo retrato da filha da monarca, a princesa Pamina (Graça Reis), que foi sequestrada para um local que a Rainha da Noite classifica como reino do Mal. Carlos Eduardo Santos é um dos protagonistas na ópera AFlauta Mágica (Foto: Paula Fróes/CORREIO) A versão apresentada pelo Núcleo de Ópera da Bahia será realizada pela primeira vez em português com um elenco local, de cantores líricos profissionais pertencentes ao coletivo Núcleo de Ópera da Bahia, sendo 80% afrodescendentes, e com a participação de cantores do Laboratório de Ópera da UFBA, coordenado pela Profª Flávia Albano e com o Coro Juvenil do NEOJIBA. 

“É uma ópera que é uma das grandes da história da música e ao mesmo tempo tem muitos mistérios profundos. Pessoas adultas podem achar profunda e cômica ao mesmo tempo porque tem personagens que fazem morrer de rir. São 15 personagens principais, mais o coro juvenil do NEOJIBA com 30 pessoas”, explica Aldo Brizzi.

Algumas das árias da ópera tornaram-se muito conhecidas, como o dueto de Papagueno (Carlos Morais) e Papaguena (Mya Suto), e as duas árias da Rainha da Noite. Ao mesmo tempo é uma ópera que parece um conto de fadas para crianças e contém os conceitos de liberdade, igualdade e fraternidade da Revolução Francesa que transparecem em vários momentos na ópera. Schikaneder era companheiro de loja maçônica de Mozart. À época, por influência da Revolução Francesa, a maçonaria ganhou simpatizantes ao mesmo tempo que era perseguida, como explica Brizzi.

Na história, ao longo do tempo, Tamino vai percebendo que as coisas não eram muito bem do jeito que a Rainha da Noite contava e que ela sequer era tão boazinha como parecia em seus primeiros contatos. O restante disso tudo, só é possível descobrir indo até o Teatro ver a peça, que fica em cartaz até o dia 19 de julho. Os ingressos estão à venda no Sympla.