'Na vida real, o mocinho pode agredir', diz criminologista

Para Daniela Portugal, a violência contra mulher não se distribui da mesma forma e, por isso, deve-se fazer uma análise além do gênero

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  • Fernanda Santana

Publicado em 25 de outubro de 2020 às 11:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Acervo Pessoal/Daniela Portugal

A criminologista e professora de Direito Penal, Daniela Portugal, não acredita num único perfil de feminicida, nem numa só cara para a vítima - embora a maioria das vítimas seja preta ou parda, segundo dados do Fórum de Segurança Pública. "Não adianta a gente fazer uma imagem vilã do agressor de mulher. Veja, os agressores contra as mulheres estão no nosso meio social", diz ela. "Em muitos casos, encontramos mulheres já a partir de 50 anos. Muitas  viveram casamentos que envolviam violências psicológicas, mas sem nunca ter experimentado violência física", conta a advogada e profesora. 

O caso da idosa assassinada pelo marido, também idoso, em Alphaville, depois de décadas de casamento não pode ser visto, segundo Daniela, como dissociado do contexto de muitos desses casamentos e da própria invisibilidade das idosas. 

De janeiro a setembro deste ano, foram 77 feminicídios - assassinato de mulheres pelo fato de serem mulheres -, um crescimento de 6% em relação aos 73 do ano passado, segundo a Secretaria de Segurança Pública da Bahia (SSP). A especificação por idade das vítimas não foi divulgada.  "Tivemos uma diminuição de medidas protetivas, e tudo isso vai acabar se refletindo, porque muitas das vítimas estarão em cárcere", diz Daniela. Em 2019, até agosto, foram 7.829 denúncias de lesão corporal contra mulheres. No mesmo período deste ano, 6.870.

Em entrevista ao CORREIO, a criminologista, também presidente da Comissão da Mulher Advogada da Ordem dos Advogados seção Bahia, tirou dúvidas sobre o crime de feminicídio, como aparecem os recortes sociais e raciais, como as idosas estão envoltas em invisibilidade e, de que forma, todos nós podemos ter um papel de denunciantes.   

Como o feminicídio aparece nas classes baixas e altas? Existe alguma diferença?

Existem duas informações importantes, que foram extraídas do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Primeiro, quando a gente fala de violência contra mulher, falamos de um tipo de prática que não se restringe a nenhuma classe social. Todas as mulheres são possíveis vítimas e essa é a primeira informação importante. Aparecem, no próprio relatório, mulheres brancas, pardas, mulheres com ensinos superior.

A segunda informação importante é que essa violência contra mulher não se distribui da mesma forma. Todas as mulheres terão a mesma probabilidade de serem vítimas? Não. Aí sim precisamos fazer uma análise que transcende o gênero e passe observe a partir de uma perspectiva interseccional.

Uma coisa é fato, se ela tem independência financeira, o processo de rompimento do ciclo de  violência pode ser mais fácil de se romper. Sabemos que, no Brasil, os fatores classes sociais e raças se cruzam, embora não sejam idênticos. Violência de classe não é a mesma coisa que violência racial, mas sabemos que as mais vulneráveis são as pretas e pardas.

Qual vizinhança interfere mais com denúncias?

Nunca houve uma pesquisa que fizesse esse recorte, não do meu conhecimento, e olhe que acompanho bastante. Enquanto advogada, eu acabo tendo muito mais contato com vitimas que tem um privilégio econômico. Quais são as mulheres que tem condição de pagar advogada? A Defensoria Pública estaria ligada às vítimas mais pobres.

O que a gente consegue observar? A nossa justiça criminal é seletiva. A justiça não chega para todos da mesma forma. Quais vão ser os processos que terão a maior probabilidade de chegarem ao fim, transcorrerem sem prescrever e chegar ao fim? Serão os de vítimas de melhor condição financeira. Não era para ser assim, claro. A gente sabe que na prática não funciona dessa forma.             

Falar com a imprensa, no caso de pessoas mais pobres, talvez seja a única oportunidade de dar visibilidade ao caso e conseguir que o processo siga. Se eu já sou invisivel para o estado, e as violências que sofro são naturalizadas, me resta a imprensa, porque a partir do momento que o caso ganha uma repercussão midiática, o jornalista prestará sua função e cobrará resposta. O jornalista fará uma cobrança que não era sequer necessária para ser feita.  

Existe, então, um perfil da vítima?

A gente pode dizer que não existe um perfil exclusivo da vítima de feminicídio. Não existe um perfil que universalize a vítima. Mas existe, sim, um perfil para identificar mulheres em maior estado de vulnerabilidade. Quais seriam? São mulheres pobres, em regras, majoritariamente, negras, dependentes economicamente, em grande parte sem ensino superior completa. E, em muitos casos, e essa é a experiência prática, da minha experiência profissional, encontramos mulheres já a partir dos 50 anos.

O que acontece com essas mulheres? Muitas dessas mulheres viveram casamentos que envolviam violências psicológicas, mas sem nunca ter experimentado violência física. Em muitos casos, nenhuma delas experimentou violência física. Mas, depois, com os filhos já fora de casa, ela tem aquela sensação social do "dever cumprido" e pensa que agora ela vai cuidar dela e quer romper aquela relação. Ela talvez, ali ,seja vítima da primeira violência física.

A mulher pode ser vítima de feminicídio depois de um longo relacionamento. Isso é muito frequente. De onde vem isso? Para além da estrutura patriarcal, as mulheres são entendidas enquanto coisas e propriedades. "Mulher minha não faz isso, não faz aquilo". É uma ideia de coisificação das coisas e não há vontade livre e autônoma.

E quanto ao agressor, existe mesmo um só perfil?

É muito dificil perfilar o agressor, até porque as pesquisas que sao desenvolvidas a respeito. Agora uma coisa é fato: a maior parte das agressões acontecem dentro de casa - 42% acontecem dentro de casa, segundo o Fórum. O que significa é que o agressor é alguém que tem com a vítima uma relação proxima. Não adianta a gente fazer uma imagem vilã do agressor de mulher. Veja, os agressores contra as mulheres estão no nosso meio social, no nosso grupo mais intimo e proximo de amigos, do nosso grupo familiar, sobretudo. Então, muitas vezes, os agressores são vistos, do lado de fora, como excelentes pais e maridos.

A gente não pode trazer um perfil do agressor de mulher tirado das novelas, porque, na vida real, o mocinho é eventualmente um agressor,  pode agredir, e é, eventualmente, aquele sujeito que vai cometer feminicidio. É importante entender isso para não naturalizar violência só porque elas são oriundas de pessoas socialmente bem-vistas. Não precisa ter sido agressivo a vida inteiro, basta um instante. 

No caso do Alphaville, eram dois idosos - a vítima e o suspeito. Quais são as questões envolvendo o feminicídio no caso dos idosos?

As mulheres idosas vêm de um desgaste de relação de um matrimônio que não se sustenta mais. No começo do matrimônio, existem até outros fatores que podem ofuscar as dificuldades de convivência. Estou falando, muitas vezes, de um homem que está fora de casa e de uma mulher que estará grande parte do tempo dedicada aos seus filhos.

Na maioria dos casos, vemos uma convivência intensa, sem vida social, vistas como sem utilidade, sem uso, aí estamos diante de um ambiente que é muito propício. Casais de idosos não encontram tanto espaço de reunião social. Há toda uma ambiência.

Isso me lembra de uma música de Chico Buarque, "Casamento dos pequenos burgueses". Num trecho, ele canta "vão viver sob o mesmo teto até que a morte os una". Um casal que viveu ali, por anos, e a única conexão foi a morte, essa pode ser a realidade de muitos desses casais. 

Por que, na pandemia, os números de feminicídio estão mais elevados? Eu acho que um dos fatores mais decisivos é a diminuição de registros de outros crimes. Houve uma diminuição expressiva do número de ameaças, de lesões corporais, de estupros, houve uma diminuição de registros de outros crimes, acompanhado do aumento de mortes. 

A partir do momento que há uma diminuição de registros - de ameaça, de lesão - significa dizer que houve diminuição dos números de registro para conseguir medidas protetivas. Tivemos uma diminuição de registros de ameaça, estupro e outras agressões, tivemos uma diminuição de medidas protetivas, e tudo isso vai acabar se refletindo, porque muitas das vítimas estarão em cárcere. 

E no momento de uma discussão - que a gente tiver presenciando - o que fazer?

Realmente, muitas vezes, as pessoas ficam na dúvida - vou intervir ou não? É só uma bobagem o não? É lógico que dentro da medida do possível acho que sempre a autonomia da vítima deve ser respeita. Se houver condições, o primeiro passo é oferecer condições a vítima, conversar com ela Mas veja que em muitas situações a vítima está num estado tal de adoecimento mental que ela não vai ter condição de avaliar quando é melhor. Então se você percebe essa situação, eu acho que um caminho do bom senso, seria? O que eu gostaria que fizessem se fosse minha mãe, minha irmã?

Quando a gente se coloca no lugar, é um caminho interessante. Eu penso da seguinte forma: na dúvida, comunique os fatos. Pelo seguinte: se você comunicar, exatamente a situação, olha estou ouvindo gritos, mas sei que é um possível caso de violência. A partir do momento que você narra exatamente o que aconteceu, dentro das suas limitações; A partir do momento em que você faz isso, na pior das hipóteses o policial pode identificar somente uma briga e não haverá processo, e você que relatou aos fatos não vai responder processo criminal. Na dúvida é melhor comunicar. Se você comunicou, ninguém vai responder. 

É possível denunciar sem expor?

Sim, você pode usar os números de atendimento, pode-se usar o 190. Ou no registro formal junto ao MP a delegacia, pedir sigilo ao processo, mas eu acho que a forma mais fácil dessa primeira comunicação talvez seriam os canais telefônicos.