'Não é porque morreu que deixou de ser humano', diz filho que carregou corpo do pai

Foi a família de Raimundo Gilberto, vítima do coronavírus, que colocou corpo no caixão

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  • Gabriel Amorim

Publicado em 16 de maio de 2020 às 06:45

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Tiago Caldas/CORREIO

“Não é porque morreu que deixou de ser humano. Eu não sei de onde veio força, foi algo triste de se ver. Um desrespeito com a gente”. A frase é do jovem Wesley Vieira Santos, 23 anos, que precisou carregar ele próprio o corpo do pai, mais uma vítima baiana do novo coronavírus. No momento de retirada do corpo de  Raimundo Gilberto Planzo dos Santos,  46 anos, para ser levado ao velório, a família recebeu dos funcionários do Hospital Geral Ernesto Simões a recusa em ajudar. Tiveram Wesley e a mãe que, com as próprias mãos, se expor ao risco de contágio para poder enterrar seu ente querido.

Autônomo, trabalhando em casa com uma oficina de alicates, Raimundo é lembrado com carinho pela família. “Ele era uma pessoa alegre, um pai presente, uma pessoa que gostava de ajudar o próximo. Eu não acredito, eu fico olhando e não consigo acreditar que um homem novo tenha morrido dessa doença”, conta emocionada a diarista Nilzete Vieira, ex-mulher de Raimundo, que junto com o filho mais velho precisou carregar o corpo do ex-marido até o caixão. Agora, a dor da perda precisa conviver com o medo do contágio e de precisar, de novo, enfrentar o vírus. Raimundo Gilberto dos Santos nao resistiu ao coronavírus depois de cinco dias internado (Foto: Acervo Pessoal) “A gente pensa que é assim, que vai passar em todos os lugares, mas não vai chegar perto da gente, e quando chega a gente fica assustado. Na minha cabeça não passa outra coisa. Depois disso tudo eu fico pensando, será? Peço a Deus que seja misericordioso para que quando a gente consiga fazer esse teste não dê nada”, espera Nilzete. Agora, ela e os dois filhos pedem ajuda para conseguir realizar o teste de contágio e ter certeza se a exposição que sofreram acabou os deixando doentes. 

No hospital 

A internação de Raimundo durou cerca de cinco dias mas os sintomas já haviam aparecido nove dias antes de procurar um médico. Sem querer ir a consulta, o autônomo conviveu com diarreia, fraqueza e dificuldade de respirar antes de chegar a ser entubado durante o atendimento hospitalar. Raimundo, que também era hipertenso, morreu na noite de domingo (10).. No atestado de óbito: insuficiência respiratória e covid-19  Foi na última terça-feira (12), no momento de liberação do corpo, que a família se deparou com o inexplicável. 

“Quando a urna chegou ele já estava no chão na maca, sem o plástico protetor, com o corpo todo exposto. Quando pedimos ajuda, porque ele era um homem grande e os funcionários da funerária não estavam conseguindo sozinhos, eu ouvi do maqueiro que ele não tinha obrigação nenhuma de ajudar a colocar o corpo no caixão, que eram normas do hospital e que eles já tinham deixado no chão para ficar mais fácil”, relata a diarista. 

Sem saída, com o enterro já marcado para poucas horas na frente, mãe e filho resolveram ajudar eles mesmos. “Os rapazes da funerária não conseguiam sozinhos, o enterro marcado, a gente não tinha o que fazer, pegamos luvas que a funerária deu para gente e eu e meu filho tivemos que carregar, A gente teve que pegar o corpo pra botar no caixão, todos os funcionários saíram, nos deixaram sozinhos, com mais um outro corpo lá enrolado”.

Questionada pelo CORREIO, a Secretaria de Saúde do Estado da Bahia (Sesab), que administra o hospital, afirmou que “a Diretoria do Hospital Geral Ernesto Simões Filho (HGESF) tomou ciência do relato da família e irá apurá-los através de uma sindicância que será publicada no Diário Oficial deste sábado (16)”. Segundo a nota enviada,, a sindicância tem prazo de 30 dias para ser concluída. “Lamentamos o ocorrido, sobretudo, neste momento de perda de um ente. As providências cabíveis serão tomadas ao final da sindicância”, finaliza o texto enviado pela Sesab. A pasta não respondeu sobre o apoio à família com a realização de testes, nem sobre os possíveis resultados da sindicância. Também não deu esclarecimentos sobre os procedimentos adotados na unidade. 

Medo A realização do teste nela e nos dois filhos é o principal pedido de Nilzete no momento. Só assim a família poderá se tranquilizar quanto a possibilidade de estarem doentes. “Todo mundo sabe que o corpo tem que sair lacrado dentro do caixão justamente para a família não ter contato. Por que a gente tinha que pegar ele? Sem estar protegido. Com luva só porque as pessoas da funerária deram. A mão da gente pegando na pele dele. Eles não podiam ter submetido a gente a passar por isso. Eles que deviam ter feito, eles que estavam protegidos, de máscara, luva”, diz a mulher. 

“Tanto os funcionários da funerária quanto os maqueiros que se recusaram a ajudar estavam com a roupa adequada, protegidos. Eu e minha mãe só com a roupa do corpo e as luvas que a funerária deu”, completa Wesley. Além dele, Raimundo deixa um segundo filho, Nathanel, de 13 anos. 

Apesar da dor, a família decidiu tornar a história pública, não só para pedir pelos testes, mas também para evitar que a mesma cena se repita com outras pessoas. “Imagine, se toda família que perder alguém para essa doença tiver que passar por isso. Quando saímos de lá tinha outra família para retirar o corpo, sem ajuda de ningúem, podem ter se exposto também”, conta Wesley. “É um momento muito triste, marcante. Meu filho não vai esquecer ter precisado carregar o corpo do pai. Eu espero que nenhuma outra família passe por isso porque ninguém merece passar, Por isso estou aqui falando”, finaliza a mãe;

Normas de segurança Quanto o óbito ocorre em casa: familiares não deverão manipular os corpos e devem evitar o contato direto;  o óbito deve ser informado à Secretaria Municipal de Saúde para liberação do corpo e a retirada feita por funerária, O velório em casa não é permitido para evitar aglomerações e não deve haver preparo do corpo mesmo que a ocorrência de covid-19 seja apenas uma suspeita.

Quanto o óbito ocorre em hospital: Durante os cuidados com corpos de casos suspeitos ou confirmados de Covid-19, devem estar presentes no quarto ou qualquer outra área, apenas os profissionais estritamente necessários, munidos de EPIs, para a retirada dos equipamentos usados no tratamento. O  corpo deve ser colocado em saco impermeável próprio (que impeça o vazamento de fluídos corpóreos). O saco deve ser desinfetado externamente com álcool a 70% e colocado em compartimento refrigerado no necrotério da unidade, com a devida identificação e sinalização de covid-19. O corpo, ainda no saco, deve ser acomodado em urna a ser lacrada antes da entrega aos familiares/ responsáveis; Deve-se limpar a superfície da urna lacrada com solução clorada 0,5%; Depois de lacrada, a urna não deverá ser aberta; 

Orientações a funerárias: Os óbitos ocorridos em unidades de saúde não serão preparados pelos agentes funerários, pois, nos casos de Covid-19, é uma atribuição das equipes de saúde; Os óbitos ocorridos no domicílio ou Instituição de permanência, não deverão ser preparados (tamponamento de orifícios naturais); velórios não são permitidos e os agentes funerários devem estar usando EPIs no momento da retirada do corpo para o cemitério.

Fonte: Nota Técnica 09/2020 da Sesab 

*Com orientação da chefe de reportagem Perla Ribeiro