'Não há outra saída': moradores comentam medidas em Brotas e Cosme de Farias

Medidas de restrições entram em vigor nos dois bairros a partir da próxima sexta (22)

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  • Da Redação

Publicado em 21 de maio de 2020 às 05:15

- Atualizado há um ano

. Crédito: Nara Gentil/CORREIO

Se não fosse pelo número de moradores circulando pelas ruas com máscaras, seria mais difícil perceber as medidas de isolamento social em Cosme de Farias e Brotas. O funcionamento de grande parte do comércio e o vai e vem de pessoas nas ruas dos dois bairros preocupa quem está com medo de se infectar pelo novo coronavírus (covid-19). Visando conter a disseminação do vírus pelas localidades, o prefeito ACM Neto anunciou, nesta quarta-feira (20), a aplicação de medidas mais restritivas nos dois bairros a partir da próxima sexta (22).

Assim como nos demais locais com medidas regionalizadas, todo o comércio formal e informal deverá fechar por sete dias em Cosme de Farias e em Brotas. A exceção é aplicada a supermercados, farmácias, agências bancárias, lotéricas, estabelecimentos que fazem delivery, cartórios, repartições públicas, clínicas veterinárias, serviços de imagem e radiologia, atendimento de tratamento contínuo (oncologia, hemoterapia, hemodiálise) e laboratórios de análise clínica.

A prefeitura diz que os “números preocupantes” dos bairros motivaram a escolha.Brotas e Cosme de Farias tiveram um crescimento exponencial na quantidade de casos em maio. O primeiro tem um total de 75 infectados e registrou 29 confirmações só no quinto mês deste ano. Cosme de Farias registrou o mesmo número de testes positivos neste mês: só que tem um total de 35 pacientes doentes. Ou seja, quase 83% dos casos foram registrados em menos de um mês.

Em entrevista que deu por videoconferência, o prefeito mostrou dados indicando o crescimento de casos nos últimos sete dias nesses dois bairros. Neste período, foram 18 em Brotas e 15 em Cosme de Farias.

Quem mora nos bairros acredita que as restrições das atividades comerciais até 28 de maio  - prazo determinado pelo decreto publicado pela gestão municipal- são o endurecimento necessário para conter o avanço da doença nas localidades.“Aqui em Brotas, as pessoas não tão nem aí. Até me contaram que uns infectados tavam saindo de casa. Fechando tudo é bem melhor porque hoje em dia eu fico com medo quando tenho que ir na rua”, afirma a estudante Rebeca Freitas, 20 anos.Moradora de Cosme de Farias “desde sempre”, a lavadeira Valquíria Pinto, 60 anos, acha que essa é a hora de toda a população se unir no combate ao coronavírus. Para ela, parte dos vizinhos ainda precisam começar a cumprir o isolamento social. “O caso é grave, a população não está levando a sério. Entre quinta e domingo, o movimento na região da feirinha é muito grande porque muita gente vai fazer compras. Nesse dias, nem dá para andar direito por aqui”, conta Valquíria.

Nascida e criada em Cosme de Farias, Tácia Muniz, 21, só deixou seu bairro para estudar História na Universidade Federal do Recôncavo Baiano (UFRB), que fica em Cachoeira - a cerca de 120km da capital. Sem aulas por conta da explosão do coronavírus, ela retornou para Cosme de Farias. Morando numa rua próxima ao final de linha do bairro, Tácia relata que o clima por lá é de normalidade. Nos primeiros dias das medidas de isolamento social, ela observou uma diminuição no fluxo de gente que andava pelo bairro, mas aos poucos esse respeito foi diminuindo.

"As pessoas andam com máscara de forma indevida, sem cobrir direito o nariz ou com a máscara no queixo e fazendo as mesmas atividades. Ficam na rua comendo, bebendo... Daqui da varanda dá pra ver a rua principal. Por lá não tá tendo paredão, mas algumas barracas de cerveja e comida continuam vendendo e uma galera ainda frequenta", diz.

"Eu já vinha pensando que Cosme de Farias tinha que ter um lockdown porque o fluxo de pessoas está muito grande. Não vejo outra saída. As pessoas continuam fazendo suas atividades normais. A quarentena aqui já acabou tem muito tempo", afirma Tácia. Cosme de Farias tem rua movimentada antes de receber medidas mais restritivas (Foto:Naral Gentil/CORREIO) Também moradora de Cosme de Farias, Janete já viu muita festa pelas ruas do bairro, em especial no final de semana. Além dos festeiros que ficam bebendo na rua pela noite, o número de pessoas que anda pelo bairro sem máscaras também a amedronta. "Achei a medida ótima. Os governantes falam para as pessoas ficarem em casa, mas as pessoas não tão nem aí. Tem gente que carrega a máscara e só coloca para entrar nas lojas", diz.

Com o retorno para Salvador, Tácia está mais perto da amiga Carolina Lima, 20, que mora em Brotas, bairro vizinho de Cosme de Farias. Entretanto, a pandemia impede que elas se vejam para trocar uma ideia, tomar uma cerveja gelada e joguem uma conversinha fora. 

Em Brotas, a situação não é diferente. Não exatamente na rua onde Carol mora, que é completamente residencial e não costuma ter movimento, mas basta acessar uma das vias principais como a Avenida Dom João VI para enxergar o cenário real.

Carol conta que em uma ida ao supermercado viu todo tipo de loja aberto: de roupas, de brinquedos e tudo que se via na antiga normalidade."É um pouco frustrante ver as pessoas furando o isolamento. Dá a sensação de que só você está fazendo aquilo, enfrentando com seriedade. Parece que vai ser tudo em vão, que nos esforçamos pra nada. Concordo com a restrição porque quanto mais severas ela são agora, mais rápido vamos sair dessa. Enquanto tiver nessa situação de meio termo a quarentena vai se alongar muito", diz Carol.Perto da casa de Maria de Fátima, em Brotas, um beco vive aglomerado durante a noite com os clientes de um bar. De acordo com ela, as pessoas até usam máscara, mas ficam por lá bebendo a noite toda. “Achei bom fechar tudo pra fazer a população ficar mais em casa e acabar logo com esse vírus. Tá todo mundo saindo como se tivesse tudo normal”, analisa.

Apesar do movimento de carros e gente na região do encontro da Avenida Dom João Sexto com a Ladeira da Cruz da Redenção, um morador de Brotas que não quis se identificar conta que acha o isolamento mais efetivo no bairro quando comparado com outras regiões que também sofreram medidas mais restritivas da prefeitura. Entretanto, ele ressalta que é necessário agir no local pois a população vem relaxando a quarentena por lá. "O movimento por aqui diminuiu, mas poderia reduzir ainda mais. O pessoal até ficava em casa no começo, mas como se passaram dois meses o pessoal já tá perdendo o medo", afirma. Frustradas com o cancelamento do São João, dupla de amigas aprova medidas que incentivem o isolamento social (Foto: Acervo Pessoal) Diferente dos vizinhos, a estudante Carol diz que mergulhou no mundo dos livros para se manter forte no isolamento. Ela já planejava algumas leituras, mas quando percebeu que a quarentena seria esticada juntou as economias e saiu comprando tudo que queria.

"O mundo dos livros tem sido meu refúgio. As redes sociais às vezes são distração, mas é uma faca de dois gumes porque ficamos cheio de informação o tempo todo e aí acaba fragilizando mais a gente, deixando nosso psicológico mais abalado", explica. Jovem utiliza máscara de forma incorreta em Cosme de Farias (Foto:Nara Gentil/CORREIO) Comércio Em um dia, as barracas e lojas abertas nos bairros terão que suspender as atividades. Nos sete dias das medidas, a banca de frutas onde trabalha Valmir de Jesus, 52, deve perder cerca de R$ 7 mil em produtos. Agora, ele está correndo contra o tempo para vender o máximo e reduzir as perdas.

"Realmente é prejuízo pra a gente, mas vai ser bom fechar porque aqui tem muita gente andando como se não existisse a doença. A saúde fica em primeiro lugar. Amanhã (hoje) começo a trabalhar às 5h para vender muito até às 19h", diz.

Funcionários de uma banca de frutas em Cosme de Farias, Daniel Novaes, 18, está confiante que vai conseguir vender todo o estoque na quinta. Assim como ele, o também comerciante de alimentos, Robson da Silva, 44, está aliviado por não ter comprado mercadoria para o final de semana. Ambos acreditam que a prefeitura deveria anunciar as medidas com mais antecedência para que os trabalhadores pudessem se programar melhor. 

“O prefeito só não avisou antes e como vai fazer pra vender as mercadorias? Se a pessoa tiver comprado muito. Eu nem vou comprar mercadoria, tem gente que comprou pro final de semana. E aí, como faz?", questiona Robson.

Mesmo com o período sem poder trabalhar, os comerciantes de Cosme de Farias reconhecem que era preciso tomar uma medida mais drástica na região. "Tava precisando fechar mesmo porque aqui tem muito movimento e algumas pessoas usam máscaras, mas outras não", relata Daniel.

Ações de proteção As medidas de proteção à vida vão englobar testes rápidos para detectar pessoas com a covid-19, distribuição de máscaras, entrega de cestas básicas a ambulantes e feirantes, combate ao mosquito Aedes Aegypti, higienização de vias e o projeto Cras Itinerante. Não haverá restrição no tráfego de veículos nessas localidades.

Epidemiologista do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (Ufba), Glória Teixeira explica que a imposição de medidas restritivas setorizadas, ou seja, em bairros e regiões específicas, é uma forma de evitar a medida mais severa que é o famoso lockdown completo em Salvador.

Mesmo sem ser tão enérgica quanto o fechamento completo da cidade, a decisão de atuar nos locais com maiores registros de casos e aglomerações contribui para reduzir a transmissão do vírus.“É correto reduzir as aglomerações para evitar que tenha mais contágio da doença. Antes mesmo de ter um lockdown completo, uma opção é tentar impor medidas onde tem mais aglomerações e tentar achatar a curva. Tem que analisar o fluxo de pessoas aglomeradas e o risco de transmissão em um local ao aplicar essas ações”, afirmou a especialista.ACM Neto diz que as ações mais restritas nos bairros têm dado certo: a taxa de transmissão do novo coronavírus na capital baiana caiu para 5,7% ontem, o que, segundo o prefeito, é um efeito direto dessas medidas adotadas pelo município.“Pela primeira vez, registramos um índice abaixo dos 6%, para que a gente tenha um pouco mais de conforto, principalmente na redução da velocidade do número de casos e ocupação dos leitos clínicos e de UTI na cidade. Isso mostra que as medidas realizadas nas regiões começam a surtir efeito”, afirma ACM Neto.Teste rápidos O gestor anunciou que o município adquiriu 35 mil testes rápidos e que o objetivo é fazer cerca de 150 testagens por dia em cada um dos bairros que está sob decreto de fechamento mais severo do comércio. 

Além de Brotas e Cosme de Farias, que entram na lista a partir de sexta, os bairros de Plataforma, Bonfim, Liberdade e Lobato também estão na 'malha fina' da prefeitura. Moradores desses bairros serão testados assim como os trabalhadores que estão na linha de frente do combate ao coronavírus.

Quanto ao trânsito, não haverá modificações. Em nota, a Transalvador afirmou que irá "prestar apoio com equipes para ordenamento do tráfego nestas regiões e orientações a condutores e pedestres. Mas não será feito nenhum bloqueio ou alteração no tráfego".

*Com supervisão da subeditora Clarissa Pacheco