‘Não tenho vergonha de te assumir’: hit da folia baiana teria sido feito para transexual

Conversamos com o compositor de 'Requebra' e com uma Deusa de Marrom

  • D
  • Da Redação

Publicado em 24 de fevereiro de 2019 às 03:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Marina Silva/CORREIO

Faz seis anos que ajudei, de forma involuntária, a dar corda a uma história que, voluntariamente, quase ninguém deu bola. Escrevia no meu ermo Facebook: “Falha a memória (ou falta repertório mesmo), mas, pelo que parece, “REQUEBRA”, do Olodum, é o primeiro grande sucesso da música baiana com temática gay – segundo James Martins (que diz ter conversado com um dos compositores), a canção fala da paixão de um cara por uma travesti.” E seguia o baile conjeturando sobre isso...

James é um dos meus grandes amigos. Meia Bahia - especialmente os meio intelectuais, meio de esquerda - o conhece. Poeta, apresentador da Rádio Metrópole, amigo de Caetano... Embora os destacados atributos, tem horas que mente que nem sente - ou que nem sabe, como nessa entrevista ao SBT na qual aparece identificado como Clarindo Silva, outra lenda viva da Bahia (primeiro Rei Momo seco do Carnaval).

Outro dia, não faz mais de ano, estávamos nós dois - eu e o Clarindo fake - juntos com uma galera resenhando sobre algo antigo do Olodum, e mencionei a vez (idos de 2005 ou 2006) que James me contou que 'Requebra' era uma homenagem a uma travesti. Surpreso com a recordação - “Eu mesmo, não!” -, disse que nunca me falou nada disso.

Não lembra porque faz tempo, mas trago os argumentos que, segundo James (ou eu, segundo ele), elucidam o claro enigma da canção de Pierre Onassis e José Carlos Conceição Nascimento, o Nêgo. Em tópicos:  “Deusa de marrom, jeito sensual. Quando ela passa, agita a cidade, pois é Carnaval” seria uma referência aos homens que se vestem de mulher nessa época, e ao fato de a musa inspiradora ser fechativa; “Eu já falei que te quero, não tenho vergonha de te assumir” seria porque a sociedade não era capaz de compreender um relacionamento daquele (se bem que hoje, né?); “Pois um homem não vive se seus sentimentos não admitir” porque o cara tava disposto a encarar as consequências disso; “Pode falar, pode rir de mim”, ou seja, foda-se o mundo! Diante daquele amor de perdição, que importava a presumida difamação? Diga lá, compositor Domingo passado, eu na Ribeira, curtindo o Mercado Iaô, ouço Margareth Menezes dizer que Pierre Onassis é o compositor de sua música de trabalho para a folia deste ano. 'Canto da Massa', que é mesmo massa e candidata a repetir o feito de 'Requebra' - eleita Música do Carnaval de 1994. 

Veio o estalo: vou tirar a história da trans a limpo. Na quarta-feira (20) bati o fio. Como estratégia pra ele não negar a versão logo de cara e encerrar a entrevista (o que achei provável), ‘arrudiei’ o assunto pra esconder o real motivo de perturbação.

Comecei, claro, elogiando o trabalho novo na voz grave de Margareth e deixei a coisa mais aguda para o meio da conversa, quando ele já descrevia a inspiração para 'Requebra' da seguinte forma.

“Na verdade, essa música despertou em mim a vontade de fazer músicas para mulheres. Depois dela vieram 'Rosa', 'A Juliana', sempre exaltando a malemolência e a beleza da mulher. E essa música, 'Requebra', tinha isso... Tinha um perfil carnavalesco e do comportamento da mulher baiana”, explicou Pierre.

Já com a resposta em mãos, abri o jogo com a descrição dos quatro trechos que sugerem que a canção, na verdade, seria para uma transexual. Surpreso, Pierre soltou uma longa gargalhada. Se acabou de rir mesmo, mas, de pronto, aceitou que as pessoas a interpretem assim também, na versão gay.“Cê vê como são as coisas, né? [Mais gargalhada] Mas o que eu acho é que a música, ela eterniza nas pessoas quando significa algo para elas; ela tem essa magia. A música é de 1993 e nós estamos em 2019 falando da mesma canção como se fosse ontem”, observou.Para Pierre - que compôs a maior parte do trecho de abertura do hit, enquanto Nêgo veio com o ritmo original e partes do refrão -, essa versão gay da letra pode, inclusive, ser um trunfo contra o preconceito. 

“Pra mim, ainda que fake, ou não, olha a importância da música dentro do nosso quadro atual. Eu sou um artista que toca pra todos os públicos, não tenho preconceito a nada. E nesse momento que a gente tá querendo quebrar esses paradigmas, e com toda essa intolerância que vem assolando, eu até espero que ela seja utilizada dessa forma, que vai influenciando as pessoas a abrir a mente", afirmou, antes de explicar que a Deusa de Marrom era uma referência à cor da pele e à canela, de Gabriela Cravo e Canela... Brinque, sacana! Uma insuspeita referência amadiana nesse hino do samba-reggae.

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A Deusa de Marrom No final dos esclarecimentos, Pierre Onassis voltou a abrir as portas da canção à comunidade LGBT: “Se algum homossexual me ligar e me disser: ‘Pierre, essa música foi feita pra mim’, eu vou dizer: ‘cara, foi feita também pra você’”.

Uma candidata a fazer essa declaração já está a postos. É a mais famosa transexual da Bahia, a dançarina Léo Kret do Brasil, ex-vereadora de Salvador e atual ouvidora na Secretaria Municipal de Reparação, que nunca tinha reparado a dubiedade na canção que tanto dançou na infância.

Agora, não há mais dúvidas da inspiração. “Parece Ricardo cantando pra mim. Eu amei! Depois que você me falou desse boato que eu fui reparar a letra. Ai, eu sou a Deusa de Marrom”, comemorou.

Ela lembra que a história do seu casamento é praticamente uma reprodução do hit recém exposto a revisionismo histórico."Meu relacionamento atual, que já vai fazer 9 anos, com Ricardo Douglas, meu marido, foi assim. Quando ele me conheceu, ele namorava com uma menina havia 3 anos, e o relacionamento dele não tava indo bem. Aí ele me conheceu e gostou de mim", recorda ela.Ainda segundo Léo, os dois ficaram algumas vezes e Ricardo Douglas "queria assumir perante a família dele, isso e aquilo", e ela segurou. "Só depois de um ano que eu vim assumir, pois eu vi que realmente ele gostava de mim”, relatou, contente com a coincidência. Léo Kret em cliques especiais para a coluna como a Deusa de Marrom (Foto: Divulgação) Legião de Reginaldos Apesar de Léo Kret ter tirado a sorte grande com Ricardo Douglas, a maioria das relações que manteve com homens autodeclarados heterossexuais lhe rendeu muitas dores de cabeça.

Esse hétero que transa com homens gays, travestis ou mulheres trans é uma figura tão comum na Bahia que tem representante até em 'Ó Paí, Ó'. Casado e prestes a ser pai, o taxista Reginaldo (papel interpretado por Érico Brás, hoje também colunista do CORREIO) costuma visitar a casa da vizinha, a transexual Yolanda (Lyu Arisson), e acaba descoberto. Relembre a cena.

Léo Kret conta que já viveu situações como essa diversas vezes, inclusive na rua onde cresceu. “Quando eu era mais jovenzinha, na adolescência, eu aprontava muito no bairro que moro, Pernambués. Inclusive com vários vizinhos casados, que enquanto as esposas saíam pra trabalhar, eles ficavam em casa... Não podiam me ver passar na rua que me chamavam, e eu tinha alguns relacionamentos, sim, com homens casados. E é bastante comum eles terem vida dupla”, entregou.

Mais comum ainda é essa dupla cidadania ser mantida, como na cena de 'Ó Paí, Ó', na base da ameaça. “A gente faz de tudo, fica com eles, guarda segredo, mas quando eles veem a gente na rua, destratam, fingem que não conhecem, falam mal pros amiguinhos... Mas depois que tá sozinho é muito comum dizer que está apaixonado, pedir desculpa”, citou.

Mas, sim, Léo, em que caixinha você colocaria esses mocinhos? “Quando eles têm relacionamento assim com gays, eles acabam sendo bi. Agora quando um hétero tem relacionamento com uma mulher, e aí conhece uma mulher trans, ele continua sendo hétero, porque ele vê em uma mulher trans a figura de uma mulher mesmo, como nós somos!”

Hétero e HSH Para o jornalista Jorge Gauthier, editor do Me Salte (canal no CORREIO voltado ao público LGBT), existe um grande preconceito contra o hétero que escolhe uma mulher trans para se relacionar.“Além da transfobia da sociedade, ainda há o reforço do comportamento machista e de entender que ao se relacionar com uma mulher trans ele será gay. Ele continuará sendo hétero. O problema é que a nossa sociedade padece de um mal chamado heterossexualidade frágil. Infelizmente, a dificuldade em admitir o relacionamento leva muitas mulheres à exclusão social”, comenta.Gauthier também explica que existe um termo oficial que define o homem que faz sexo com outros homens, mas que não são - veja só - homossexuais.

"O termo HSH é uma classificação, inclusive, usada pela OMS dentro das estratégias de prevenção de doenças sexualmente transmissíveis. É uma classificação voltada exclusivamente para o sexo”, explica, antes de também problematizar a situação.

“Infelizmente, muitos HSH não conseguem ir além do sexo com outro homem. Assumir um relacionamento que fuja aos padrões impostos pela sociedade heteronormativa não é fácil. Vivemos num país machista, preconceituoso e que lidera o número de pessoas LGBTIQA+ mortas no mundo. Isso faz com que muitos HSH vivam na obscuridade e infelizes junto com os outros homens que eles se relacionam”, conclui.

Vídeo da semana Mas, pra concluir essa estreia com o astral lá no alto - vocês perceberam que era um texto de coluna que se travestiu depois de reportagem? -, vou fechar a conta com alguns vídeos que mostram que fazer televisão ao vivo (especialmente na Bahia) é um perigo.

- É ou não é, minha tia? - Qui, porra ninhuma!

Na Lavagem de Itapuã, a complicação foi ainda mais explícita.

Frase da Semana E já que estávamos falando em Deusa de Marrom, a frase da semana é do meu colega de redação Osmar Marrom Martins. Abre as aspas: “Eu não tenho dinheiro, mas tenho esplendor”. Sendo assim, pode falar, pode rir de mim.

*João Gabriel Galdea é jornalista, colunista e editor no CORREIO.