Nesses novos tempos, a política também precisa de afeto 

Está difícil para todos, mas tenha certeza: está mais difícil ainda para quem perde um dos seus

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  • Edgard Abbehusen

Publicado em 5 de julho de 2020 às 04:54

- Atualizado há um ano

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“E daí? Quer que eu faça o quê?”, disse o presidente da república ao ser informado sobre o recorde de número de mortos pela pandemia do novo coronavírus no Brasil, em abril. Todos nós lembramos bem. Essa semana fomos surpreendidos, de novo, com uma declaração pública vindo de um político em um momento tão sensível para os brasileiros. Dessa vez, o episódio aconteceu em Itabuna, no sul da Bahia. O prefeito Fernando Gomes gravou um vídeo dizendo que o comércio iria reabrir “morra quem morrer”.

Resumindo: Mesmo que carros do exército carregando corpos desfilem pela famosa Avenida Cinquentenário, coração comercial da cidade, todos estarão com suas lojas abertas com promoções vendo a banda passar. 

Desumano, egoísta e monstruoso. Vocês devem pensar: esse aqui não é o colunista de Amor do CORREIO? Sim, mas quem disse que o afeto e a política precisam caminhar por destinos distantes?

No mundo inteiro, líderes e chefes de estado lutam contra o tempo para preservar vidas. Ferindo, inclusive, o principal motivador de popularidade de qualquer gestão, a economia, para evitar uma catástrofe irreversível. Afinal, são vidas que geram lucro e só os donos de funerárias seriam beneficiados com o relaxamento da, até então, única medida possível para frear o avanço do vírus: o isolamento social. 

Eu sempre gostei de política. Arrisquei até ser candidato a vereador, em 2012, na minha cidade, Muritiba. E como bem disse Ronaldo Jacobina em uma das suas notas, eu acabei sendo salvo pelo santo protetor da literatura. Só que acredito que é possível fazer política com afeto. Hoje, jamais me arriscaria a concorrer a um cargo eletivo, mas sempre acompanho e me atualizo sobre o tema. A gente reconhece o caráter de um homem através do seu olhar sensível para o que importa. No caso de Itabuna, por exemplo, são mais de 50 mortos pelo novo coronavírus e quase 3 mil casos confirmados. São lágrimas, são famílias arrasadas pela perda de alguém querido. São filhos que perderam pais, pais que perderam filhos. É dor forte no peito e uma saudade que só o tempo vai curar. É um luto eterno na mente de quem está vivendo a crueldade desses tempos. Fernando Gomes, o prefeito, que parece até ‘meio’ acabadinho e debilitado no vídeo, coitado, fala da morte dos seus de um jeito tão natural, que assusta e causa náuseas em quem lhe escuta. É o famoso personagem que se senta em cadeiras de gestões por várias cidades pelo Brasil. Aquele cidadão ou cidadã que, se não fosse prefeito, talvez, não seria nada. E precisa do poder para existir, encontrando no eleitor fragilizado pelo caos social, cultural e educacional, a oportunidade para ocupar lugares de tamanha importância para a sociedade. 

Eles não estão sozinhos e não são os únicos políticos que pensam assim, eu sei. Mas que a gente mire nos bons exemplos. No gestor que, nesse momento tão crítico, escolheu a vida e o afeto para lidar com um dos maiores desafios dos novos tempos. Para você, que perdeu alguém nessas mais de 60 mil mortes aqui no Brasil, a gente tem que pedir desculpa como eleitor, como cidadão e como sociedade. Apesar de nunca ter votado em Itabuna, somos todos corresponsáveis por gestores com o perfil perverso chegarem ao poder.  

Acredito muito que estamos caminhando para um novo tempo. Que estamos buscando um novo olhar. Que estamos atentos aos empresários que querem abrir as suas portas e os seus restaurantes para o luto. Ou eles pensam que o filho que perdeu o pai ou a mãe, ou a mãe que perdeu um filho, vai se sentar nos seus bares e restaurantes para tomar uma cerveja no final de semana? Ou ir na loja da esquina comprar um look novo? 

Está difícil para todos, mas tenha certeza: está mais difícil ainda para quem perde um dos seus. Não esqueceremos das palavras dos políticos com o perfil do Fernando Gomes. Não esqueceremos dos carros importados desfilando pelas ruas pedindo para que tudo abra e o povo morra. Não esqueceremos de quem esqueceu que existem profissionais de saúde abdicando da família, evitando abraçar os seus filhos por meses e se expondo para lutar pela vida. 

O afeto vai vencer. Nós passaremos por isso e vamos sobreviver a esses tempos. E de lá, do futuro, vamos olhar para trás e perceber que o lixo da história está repleto de gente tosca e egoísta. E que possamos celebrar que gente assim jamais tenha a chance de ocupar lugares que nunca deveriam ter ocupado. 

Para os políticos que estão em mandato nesse momento, olhem e cuidem das suas cidades e regiões com afeto. É disso que todo cidadão precisa agora. Ação e afeto. Coração. Seja lembrando pelo amor, não pelos memes e vídeos lamentáveis como esse prefeito que fala da morte com tanta intimidade, que até parece ser um próprio porta voz.   

*Edgard Abbehusen é escritor, compositor, redator, baiano, criador de conteúdo afetivo e  autor de livros; Ele  publica textos exclusivos aos domingos no site do CORREIO. Acompanhe Edgard no Twitter e Instagram