No dia de Exu, ebó coletivo marca protesto contra navio no Porto de Salvador

Ato ocorre no Porto de Salvador até às 19h; embarcação não abriu hoje

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  • Tailane Muniz

Publicado em 4 de novembro de 2019 às 15:32

- Atualizado há um ano

. Crédito: Marina Silva/CORREIO

Toda segunda-feira é dia de Exu. Ele está por todos os lados, em busca do que lhe é oferecido, defendem sacerdotes do candomblé. Não à toa, a oferenda dedicada ao orixá, nesta segunda (4), são corpos vivos. Os corpos negros da Frente Nacional Makota Valdina que formam o ebó coletivo. E eles se oferecem simbolicamente a Exu, no Porto de Salvador, no Comércio. 

Hoje não há matança ou despacho, mas o repúdio à demonização do Senhor do Corpo, assentado a poucos metros dali, na Baía de Todos os Santos. Mesmo lugar onde está atracado há dez dias o Logos Hope - navio cuja organização afirmou que a capital baiana é “conhecida pela crença das pessoas em espíritos e demônios”. A embarcação, administrada pelo grupo alemão de origem cristã Good Books For All (GBA), abriga a maior livraria flutuante do mundo. 

Por isso, o ebó é a resposta, explica a educadora social e ekede Lindinalva de Paula, 57, uma das que está à frente do coletivo. “Estamos oferecendo nossos corpos pela cultura de paz”, adianta ela, nos primeiros minutos do ato, iniciado às 10h. E explica que as oferendas são tão criminalizadas quanto Exu, de quem afasta qualquer relação com o demônio. 

“Assim como a oferenda, os orixás são demonizados e discriminados. Quase uma criminalização de nossa cultura. Para nós, do candomblé, a oferenda tem muitos sentidos. Hoje nossa oferenda é por pedido da paz que eles deveriam pregar ao redor do mundo”, diz, ainda em referência aos organizadores do Logos Hope, que ficou aberto à visitação até este domingo (3). O CORREIO não conseguiu contato com os administradores do navio, que segue atracado.  Povo de santo realiza ato em frente a navio Logos Hope, no Porto de Salvador (Foto: Marina Silva/CORREIO) Guiado por Exu Ialorixá do Ilê Axé Abassá de Ogum, terreiro que funciona há 38 anos no bairro de Itapuã, Mãe Jaciara Ribeiro diz que o povo de santo recebeu a declaração do Logos com “toda indignação”. Nem as desculpas da GBA resolveram, diz.  Ela garante ainda que Exu está “nadando e resolvendo”. Ela explica que, no candomblé, o visível e o invisível se misturam.

Mesmo antes de chegar Salvador, em 25 de outubro, a mãe de santo afirma que o Logos já sofria a influência do orixá. “Exu guiou. E ele está aqui, sobre o assentamento dele. As pessoas precisam respeitar o nosso culto, a nossa história, os orixás”, diz ela, ao citar a descoberta arqueológica afundada em uma área que fica entre a Codeba e o Ferry Boat. Jaciara pontua, contudo, que, de cristãos a evangélicos, ateus e agnósticos, cada um sofre a consequência dos próprios atos. “O tempo é o senhor de tudo. Quem sabe as pessoas compreendam um dia que nós não cultuamos demônios e que absolutamente todos nós colhemos o que plantamos. Em nome de tudo isso, somos o ebó coletivo, vestimos branco e pedimos paz”.

Ebó Mais do que a oferta de comida ou objeto a um orixá, arriar uma oferenda envolve sentimento e preparação, defendem pais e mães de santo. Aos adeptos das religiões de matriz africana, o ebó é sagrado desde preparação. Para além disso, é algo que pode ser ofertado tanto para o bem, quanto para o mal, explica o doutor e professor do Programa de Pós-graduação em Antropologia da Universidade Federal da Bahia (Ufba), Ordep Serra.

“Uma das nomeclaturas de Exu, no candomblé, é Senhor dos Corpos. O ebó, em iorubá, significa oferenda. As pessoas julgam como sendo algo maléfico, mas isso não é verdade. Você pode fazer um ebó com a intenção A, B ou C. É um ato religioso que pode ser negativo ou positivo”, diz.

Quanto ao ebó coletivo em resposta ao post discriminatório do Logos Hope, interpreta: “Para mim, é meio que despachar o navio. Tipo ‘vai pra longe com a sua demonização’, neste caso, seria essa oferenda, mal recebida após aquela publicação”. Assentamento de Exu na Baía de Todos os Santos (Foto: Andre Motta de Lima e Leandro Duran) Para a professora e ekede Amanaiara Conceição Miranda, 48, a declaração feita é consequência de uma “colonização do saber”. Afirma que o “eurocentrismo”, ou seja, a valorização da cultura branca e de origem europeia, autoriza uma “investida contra religiões de matriz africana”, a exemplo do candomblé.

“Nos demos uma educação colonizadora. E isso é o que condiciona esse tipo de absurdo. Historicamente, sofremos disso, porque há uma colonização da educação”, opina.   E até quem está longe de praticar o candomblé concorda. Pastor protestante, Djalma Torres participou do início do ato. Comenta que a declaração é “péssimo gosto” e, enquanto for tolerada, “haverá guerra” entre os homens. “São afirmações pecaminosas, que não considera a pluralidade das religiões, dos povos, da própria vida”. 

O pastor reflete ainda que, seja qual for a orientação religiosa, há possibilidade de praticar a crença em qualquer lugar do mundo. Djalma conclui o raciocínio ao afirmar que Salvador é de Jesus para os cristãos, Javé para os judeus e Oxalá para o povo de santo.