No país de Eleanor Rigby

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  • Paulo Sales

Publicado em 14 de outubro de 2019 às 05:00

- Atualizado há um ano

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Ontem voltei a ouvir Eleanor Rigby, talvez a mais bela e profunda canção dos Beatles. E mais uma vez aqueles versos repletos de compaixão me comoveram. De onde vêm as pessoas solitárias? A que mundo elas pertencem? Eleanor vive em um sonho e ao morrer ninguém vai ao seu enterro. Padre Mackenzie escreve sermões que ninguém escuta. Não foi por acaso que lembrei da canção. Tinha lido pouco antes a notícia de que, na Alemanha, um homem morreu e seu corpo permaneceu no apartamento por oito anos sem ninguém perceber. Oito anos. Os restos do seu cachorro – morto provavelmente de fome – também estavam lá.

Ao contrário do que se imagina, não se trata de um fato isolado, sobretudo na Europa. Já houve casos semelhantes de homens e mulheres, normalmente de idade avançada e sem parentes próximos, que deixam o mundo sem que o mundo se dê conta. No caso do alemão, o corpo só foi descoberto porque ocorreu um princípio de incêndio no prédio e tiveram que bater na sua porta. Como não houve resposta, arrombaram. Se não, seriam outros oito anos, quem sabe mais. Apenas uma vizinha dera por falta dele e chamara a polícia anos antes, mas o caso não foi adiante. Seu carro ficou estacionado na garagem e sua caixa de correio estava lotada. Como o proprietário do apartamento recebia em dia, ninguém se preocupou em saber por onde ele andava.

Heinz (esse era o nome do alemão) pertence à mesma estirpe de solitários descritos em Eleanor Rigby. São habitantes de um país desconhecido, que ao longo das décadas se revelam incapazes de construir laços afetivos duradouros e acabam condenados à invisibilidade. É como se, antes mesmo de morrerem, já estivessem condenados ao oblívio. Isso me traz à mente um trecho de Fernando Pessoa em O Livro do Desassossego: “Amanhã também eu me sumirei da Rua da Prata, da Rua dos Douradores, da Rua dos Fanqueiros. Amanhã também eu – a alma que sente e pensa, o universo que sou para mim – sim, amanhã eu também serei o que deixou de passar nessas ruas, o que outros vagamente evocarão com um ‘o que será dele?’. E tudo quanto faço, tudo quanto sinto, tudo quanto vivo, não será mais que um transeunte a menos na quotidianidade de ruas de uma cidade qualquer”.

Como Pessoa, todos nós sumiremos. Mas ao menos imaginamos que alguém vai dar por nossa falta, sofrer com nossa ausência, guardar com carinho na memória uma conversa amigável, uma viagem enriquecedora, uma relação apaixonada. No caso dos companheiros de infortúnio de Eleanor Rigby, nem isso é possível. Para eles, a solidão é como um aquário, que os isola de confraternizações de fim de ano, conversas fúteis no trabalho, telefonemas de velhos amigos, visitas dos filhos e, consequentemente, lágrimas no próprio funeral. Heinz tinha ao seu cachorro, mas outros nem mesmo podem desfrutar desse consolo. Como consequência, partem sem alarde, como no poema de Bandeira: “Morrer sem deixar um sulco, um risco, uma sombra / A lembrança de uma sombra / Em nenhum coração, em nenhum pensamento / Em nenhuma epiderme”.