Nomes que têm história: baianos levam Independência da Bahia na certidão

CORREIO vai atrás de Marias Felipas, Marias Quitérias, Joanas Angélicas e Felisberto Caldeira; confira

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  • Fernanda Santana

Publicado em 1 de julho de 2018 às 06:30

- Atualizado há um ano

. Crédito: Marina Silva/CORREIO

Não é tão fácil achá-la. Sabe da arte da esquiva. Marisqueira, capoeirista, negra liberta, líder entre homens e mulheres, Maria Felipa emerge como uma escultura viva da Independência da Bahia, do Dois de Julho. Antes de tudo, capoeirista. Na Batalha do Funil, Felipa esteve à frente das vedetas, mulheres espiãs; organizou envio de materiais para outros lutadores; combateu a entrada das tropas inimigas na Ilha de Itaparica. Vitoriosa na arte da libertação, tentamos achá-la na Bahia de hoje. Revelou-se a história por trás da busca: esquecimento e negligência. 

Na Igreja do Bonfim, as Marias Felipas foram procuradas. Última quinta-feira (28), tocavam as caixas de som a chamada para possíveis mulheres com nome da heroína. O padre recebeu o pedido pouco depois do início da missa das 10h. A administração ajudou. E os vendedores de fitinhas, voluntários, turistas. Nenhuma resposta. Onde estariam as Marias Felipas? A representatividade dos nomes dos heróis da Independência entre os baianos, cada vez mais rara? O pesquisador e morador de Itaparica, Felipe Brito, responde e justifica o motivo da ausência de novas Felipas entre os registros dos Cartórios: “Maria Felipa não entra para a história conhecida por todos porque muitos nem conhecem sua saga de representatividade. Além disso, é uma mulher negra, que comprou a própria alforria”. Ainda nas vésperas das comemorações da Independência, iniciadas na Ilha no dia 7 de janeiro, os organizadores começaram a procura por uma mulher, jovem ou idosa, com o nome da heroína. Queriam homenagear a lutadora da emancipação quando é lembrado janeiro de 1823: momento em que são expulsos os portugueses da região. Nenhuma Maria Felipa localizada. Nem lá, nem nas escolas: na rede municipal de Salvador, nenhum registro de Maria Felipa; na estadual, apenas uma. 

Estudiosa da memória da independência no Recôncavo, Tamires Costa declara: “Grande parte da história e dos documentos estão na oralidade, na memória dos que viveram”. Para ela, há, sim, casos recentes em que nomes da Independência têm sido lembrados. Muito por conta da proximidade do centenário da Independência: “Há uma intenção, aparentemente, de aflorar essa relevância”. 

Ao final, foram encontradas duas Marias Felipas: Maria Felipa Rios Santana Dias Ferreira,1 ano, e Maria Felipa dos Santos, 96. O hiato que insinua a distância entre os baianos e sua história. A primeira teve o nome escolhido justamente para homenagear a Maria Felipa de Itaparica (leia abaixo o relato da mãe, Mariana Rios, editora do CORREIO); a segunda, aos 96 anos, desconhece a origem do nome - o avô, no entanto, morou em Santo Amaro na época da luta pela emancipação. Maria Felipa, 96 anos: avô morou em Santo Amaro na época da luta pela emancipação (Foto: Arisson Marinho/CORREIO) É mãe de dois filhos, começou a trabalhar aos 13 anos, deixou o rebento para ser empregada doméstica no Rio de Janeiro. A filha, Teresa, 55, reconhece na mãe traços de guerreira: “Ela fala logo na cara, é do tipo que tem personalidade. Nunca levou desaforo para casa”. A própria Maria Felipa, reconhece, bem-humorada: “Lutei tanto, trabalhei tanto, que me considero uma heroína sim”.

A Secretaria de Turismo da Ilha, então, parece ter entendido o mistério entre as Marias Felipas perdidas. Pelo menos Felipe Brito, conhecedor da história da capoeirista-marisqueira. Maria Felipa é mais que um nome, é ativismo e luta, símbolo de mulheres negras revolucionárias.“Essa busca continua. Mas vemos: Maria Felipa, no entanto, não é necessariamente chamada Maria Felipa. É sim história de ativismo na Ilha de Itaparica. De identificação das mulheres que lutam”.De blazer e calça Era tarde de convenção partidária, em julho de 2008, e a jovem Maria Quitéria Mendes estava prestes a ser lançada como candidata à Prefeitura de Cardeal da Silva. Vestiu-se de blazer e calça, tornou o semblante sério, e lançou à praça cheia: “Estou me vestindo de homem porque nessa terra não se respeitam as mulheres. Hoje eu estou me vestindo de Maria Quitéria”. A força da História encorajou a futura prefeita, uma entre outros baianos que carregam no nome o legado de heroínas e heróis do Dois de Julho. Maria Quitéria estudou para rebater brincadeiras com nome (Foto: Mauro Akin Nassor/CORREIO) A Maria Quitéria de Jesus, nascida em São João de Itapororocas, no Recôncavo Baiano, é a inspiração da homônima da cidade do Nordeste da Bahia. Nascida em 27 de julho de 1798, ultrapassou os arames da fazenda onde morava com pai e mãe para participar da revolta em ebulição na Bahia. Decidiu se vestir de homem para lutar em defesa do estado: uma resposta aos colonizadores portugueses que ignoravam a emancipação política de alguns estados do país, proclamada em 7 de setembro de 1822, e ao machismo das corporações. 

Pouco tempo depois, os feitos de Quitéria a fariam entrar para os autos da História como a maior heroína das lutas pela independência do brasil na Bahia. O historiador Fábio Valente relembra o fato de Maria Quitéria ter lutado no 3º Batalhão dos Caçadores do Imperador, o Batalhão dos Periquitos, responsável por instigar a revolta em outros batalhões de Salvador e do Recôncavo. A figura da mulher lutadora, contrária as repressões políticas e sociais, inspiraram também o pai da Maria Quitéria Mendes. 

O avô da ex-prefeita participou da guerra pela independência, iniciada, de fato, no dia 25 de junho na Vila de Nossa Senhora do Rosário da Cachoeira, no Recôncavo. Nunca esqueceu da bravura da colega de luta. E o filho, Nélio Borges, levou adiante a admiração. Até que nasceu a filha, no dia 5 de julho de 1978, e foi tomada a decisão de homenagear a heroína da Bahia. Uma inspiração constante para Maria Quitéria, hoje com 40 anos.“A consciência patriótica que ela tinha é impressionante. A luta por justiça por liberdade, pela causa coletiva, me inspira”, conta. O nome até causou estranhamento entre os colegas de escola, quando eram todos crianças. Mas Maria Quitéria estudava para rebater as brincadeiras maldosas. Tiradas que muito dialogam com a escassez de conhecimento sobre a Independência da Bahia. O historiador Juarez Bonfim comenta:“A história da Bahia é pouco difundida entre os baianos. Tudo é feito de modo precário, como num grande pacote importado do sul. Os nomes entram nesse jogo. Num mundo midiático, os pais preferem homenagear personalidades da música e da televisão que da própria trajetória”.A raridade revela-se em números: pelas escolas municipais de Salvador, passaram apenas 19 Marias Quitérias, segundo cálculo feito por uma funcionária de rede para o CORREIO. A mais nova, nascida em 2004; a mais velha, em 1957. Nas escolas estaduais pela Bahia, são 81 meninas com o nome da personalidade. Nem na própria Escola Municipal Maria Quitéria, em Brotas, já houve uma aluna com o nome da heroína. Professora da unidade há quase 10 anos, Valdemira Paulino, 58, confirma a tese de Juarez:“Na infância, eu tinha uma colega Maria Quitéria. Mas hoje? Só nome americanizado mesmo, nomes sem propósito”.Também para Maria Quitéria Oliveira, 48, foi uma história de enfrentamento em meio a perguntas sobre seu nome. Mas ficou gravado, nela, o principal: uma relação de luta e adminiração pelo nome. O pai, ex-militar, sempre explicava o significado da homenagem: “Ele me falava da batalha, das ideias progressistas, da luta constante. Como mulher, ter nome de guerreira é uma força”. Na vida de ex-metalúrgica, o nome foi uma força extra contra a repressão masculina. 

Numa mina de ouro do Vale do Rio Doce, aos 24 anos, precisou enfrentar peões e poderosos. “Ouvia coisas do tipo: “aqui agora virou passarela”. Continuei fazendo meu trabalho. Tive que ser mais dura, me impor. Só não desisti porque sempre fui de luta”. De luta como sempre foi Maria Quitéria de Jesus.

Mais lembrado No dia 19 de fevereiro de 1822, a freira Joana Angélica de Jesus pôs-se à frente de tropas portuguesas revoltosas, no Convento da Lapa, para impedir que fossem encontrados jovens combatentes soteropolitanos. Saiu de lá apenas morta, vítima da truculência dos algozes. A história é relembrada sempre por Silvia Costa ao ver a filha de 8 anos, sua Joana Angélica. Numa noite, as duas assistiam à televisão e a garota mirou a mãe com a conclusão:“Minha mãe, o marido não quer deixar a esposa trabalhar. Isso é machismo. Isso não é justo”. A pequena Joana já sabe da história por trás do nome. Homenagem à mártir da luta. O sogro de Silvia, aos 83, foi quem sugeriu a homenagem, disse ter uma intuição da personalidade autêntica da criança que ainda crescia dentro de Silvia. “A irmã de Joana, Paulinha, diz que Joana dá força para ela. Porque ela é mesmo muito forte. É uma menina empoderada, não é de querer parecer princesa, é nossa heroína”, diz Silvia.  Joana Angélica, 8 anos: já sabe da história por trás do nome (Foto: Evandro Veiga/CORREIO) De heroína para heroína, Joana Angélica, entre os nomes de personalidades do Dois de Julho, parece ser o mais relembrado no momento das homenagens. Ganhou até nome de avenida, no bairro de Nazaré, centro de Salvador. Nas escolas municipais, passaram 19; na rede estadual, são 203 matriculadas. A maior popularidade, novamente para o historiador Fábio Valente, é sinal da disparidade de registro históricos. “Há muita coisa que a historiografia não consegue cobrir. Temos mais informações sobre uns; sobre outros, é como se não houvesse registro. Os casos de Joana Angélica, Maria Quitéria, por exemplo, são mais conhecidos”, acredita. Outra Joana Angélica que imprime na trajetória a coragem é Joana Angélica Silva, 37. Teve o primeiro filho aos 15, formou-se dançarina, partiu com a Companhia de Dança Brasil Tropical para Europa sem outro idioma no currículo. A mãe vislumbrava: “Dei esse nome que é para você ser guerreira”. E Joana tornou-se uma guerreira: levou o filho para Bélgica, onde vivem até hoje, dançou em reconhecidos teatros, aprendeu outros idiomas. “Eu, que tanto rejeitei esse nome, não sabia. É uma força dentro de mim”. 

A rejeição contra o próprio nome é comum também ao músico Felisberto Tanajura, 44. Leva consigo o nome de Felisberto Gomes Caldeira, cabeça da 2ª brigada da guerra pela independência na Bahia, em Armações, e agente da expulsão das tropas portuguesas do General Madeira de Melo. Mas nunca ouviu do pai a história por trás do Felisberto. “Eu não me conectava com o nome, mas não recebia nenhuma resposta”, lembra Felisberto. Para o músico Felisberto nome traz a 'força de um estado de espírito de felicidade' (Foto: Arisson Marinho/CORREIO) Já nos últimos dias de vida do pai, Felisberto questionou novamente ao pai o porquê do nome. Ele, num lapso, respondeu: “você é o baluarte da família”. “Eu apenas respondi: tá bom, meu pai, tá bom”. Hoje, o mais jovem dos irmãos afirma:“Incorporei meu nome. Para mim, ele traz a força de um estado de espírito de felicidade”. A luta dos heróis da Independência é reconfigurada pelos heróis do dia a dia. E o Dois de Julho na Bahia ganha novo fôlego para perseguir, na história, uma posição de destaque. O lugar que lhe é devido.

Relato* - 'Uma pequena batalha  para o registro':Antes de ela existir, já havia escolhido o nome. É daquelas coisas de 'se um dia eu tiver filho’. Mesmo nunca me imaginando mãe. Um nome não pode ser em vão. Pelo pai ser chamado Felipe, fui 'acusada' de fazer 'homenagem' - sou cercada por bons e queridos Felipes. Mas, Felipa precedida por Maria é soberana. O pai havia trabalhado em Itaparica e lá, onde a guerreira negra é reconhecida e homenageada, viu e conheceu o orgulho nativo pela heroína. Foi capturado por ela. E acabamos acolhidos em seu bando.   Aqui em Salvador, saímos ensinando história aos curiosos. Ainda somos negligentes com o passado. Mas agora, os amigos, olhos atentos,  vão reunindo e enviando quando encontram o  nome escrito em paredes e artigos, ouvido em discursos ou vistos em fotografias de um perfil que vamos construindo em nossas memórias. Lembro do grafite na Lapa, do discursos de resistência - recebi a foto de uma projeção da imagem exibida no show de Lazzo, a pesquisa transformada em livro da professora Eny Kleyde Vasconcelos Farias.  Não adianta silenciar a história desse nome composto. Encontramos preconceito e descrença até entre os próximos - poucos eram entusiastas. E defendíamos, apontando para a Ilha, trazendo o Dois de Julho para a conversa, em links distribuídos no Whastapp. Uma pequena batalha  para o registro e o nome vingou. Pela insistência sim e também pelo fascínio e orgulho que despertam nossa independência, sua força e beleza.   Imagine ela: negra, marisqueira, capoeirista, liderando 40 mulheres na Praia do Convento em 1823, com Marcolina, Joana Saleiro e Brígida do Vale.  E eram outras tantas, viajando pelo rio Paraguaçu e Recôncavo, ocupando campos, subindo e descendo em barcos, amarrando as saias nas pernas para lutar, ajeitando o torço, rindo dos portugueses urtigados de cansanção... Como no primeiro retrato feito só em 2005 : alta, bem formada, como outros tantos negros sudaneses, "robustos física e intelectualmente, unidos entre si, mostrando-se inclinados a movimentos revolucionários". Para que nunca a gente esqueça: somos nós e essa luta.  * Mariana Rios é editora do CORREIO

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Conheça a história de heróis e heroínas do Dois de JulhoMaria Felipa: Marisqueira e lutadora pela Independência da Bahia, Maria Felipa lutou pela emancipação na Ilha de Itaparica. Esteve à frente das Vendetas, mulheres espiãs que colhiam informações sobre tropas inimigas. Joana Angélica: A freira entrou para a história ao enfrentar tropas portuguesas dispostas a invadir o Convento da Lapa, localizado no centro da cidade de Salvador, no dia 19 de fevereiro de 1822. A jovem se coloca à frente dos colonizadores para impedir que jovens combatentes soteropolitanos fossem encontrados. As tropas portuguesas, então, assassinam a freira. Mas o ato de bravura ficará gravada na história Maria Quitéria: Natural de São João de Itapororocas, em 1798, teria deixado a vila onde morava disposta a lutar pela emancipação política baiana ao ouvir notícias da batalha iniciada no dia 25 de junho de 1822, em Cachoeira. Numa época em que mulheres não podiam lutar, Quitéria quebrou paradigmas: se vestiu de homem e participou ativamente da batalha pela independência. Felisberto Caldeira: Felisberto Gomes Caldeira foi responsável pela 2ª brigada da guerra pela independência do Brasil na Bahia, em Armações, até as proximidades de Itapuã. Foi preso durante a luta e atuou fortemente na expulsão das tropas portuguesas do General Madeira de Melo. ***

Programação do Dois de Julho Hoje (1º), às 16h: Chegada do fogo simbólico ao bairro de Pirajá e acendimento da Pira, no Largo de Pirajá, o hasteamento das bandeiras por autoridades e a colocação de flores no túmulo do General Labatut.

Amanhã (2) 6h30: Te Dum, celebração religiosa anterior ao cortejo: na Paróquia da Lapinha. 

7h30: hasteamento das bandeiras por autoridades, com a execução do Hino Nacional pela Banda de Música da Marinha do Brasil. Depois, começa o cortejo cívico em direção ao Largo do Dois de Julho  17h: comemoração deve ser finalizada e acontece o hasteamento das bandeiras do Brasil, Bahia e Salvador, colocação de coroas de flores no monumento ao Dois de julho pelas autoridades presentes e acendimento da Pira do Fogo Simbólico pelo pugilista Acelino Popó Freitas.

*Com supervisão do chefe de reportagem Jorge Gauthier e da editora Mariana Rios.