Nos álbuns, disparam obuses

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  • Kátia Borges

Publicado em 16 de agosto de 2020 às 05:00

- Atualizado há um ano

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Na foto é a minha mãe, que caminha ao longe e me olha. Sua imagem é a captura da retórica de uma passagem. Ignoro há quantos anos o gesto impresso me guarda, os olhos por trás da máquina, à caça do afeto espontâneo. Um clique que rouba a alma, ou como diria Balzac, retira de nós em camadas as lâminas fantasmagóricas com que se faz uma pessoa. E é como espreitar a infância do alto da vida adulta.

Há algo de melancólico que o colorido interdita na captura da tarde, como se reinventasse aquele dia, aquelas horas. Ou como se fosse possível, em meio ao caos do presente, “encontrar a estrutura do mundo”, desconstruir sua base. Assim define o ofício, o mago Cartier-Bresson. Nas gavetas dos amadores, há dezenas de 3x4 sem a serventia prática que moveu urgências tardias nas filas dos lambe-lambes.

Resisto a lançar fora aqueles olhares, tão amarelos e assustados, já na origem destinados a estampar documentos hoje inúteis. Há tempos não acho feio qualquer rosto que seja humano. As fotos antigas nos guardam como se pudessem acordar. Do presente, roubam pedaços. Talvez seja o que procuro, enquanto organizo álbuns que contam a minha história e, que consolo, não há nela nada que seja único.

De único, talvez só o fato de ainda guardar esses álbuns como se fossem obuses a disparar fogo amigo – nas guerras que travo comigo, é tudo de mim contra mim. Sinto as mãos mergulhadas no líquido que revela imagens sempre que tiro uma selfie, por dentro revolvo as águas da química que faz a mágica de aparecer o meu rosto. Sou eu no agora infinito que observo essa tarde, na qual minha mãe caminha.

Em mim seu olhar se demora, e é como se perscrutasse na lâmina da minha face algo de seu que ainda guardo, e a face de minha avó (e o tempo fosse um detalhe). Somos almas que se desfazem em milhares, milhões de pixels, tão urgentes quanto os 3X4, e do mesmo modo inúteis – os documentos que contam a história de nossa época se agigantam num corpo sem cérebro que o sustente.

Pouco entendem, decerto, os que nunca aguardaram por dias a revelação de imagens, quando se curtia na demora a espera de ser pra sempre. E então a vida mudava e já não nos reconhecíamos naqueles retratos de antes. Assim também os amores, dispersavam-se no Inverno enquanto as fotos da praia eternizavam momentos que já não traduziam o presente. Nos álbuns, disparam obuses.