Nos EUA, baiana faz relato emocionante de como lutou para preservar memória afetiva e tradição familiar nesta Semana Santa

'Vivendo em outro país e no meio da pandemia, eu sabia que não teria esse almoço em família que tanto alimenta meu coração. E senti que era hora de eu também levar a tradição adiante'; leia relato na íntegra

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  • Da Redação

Publicado em 4 de abril de 2021 às 16:00

- Atualizado há um ano

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Textão de Adriana Jacob, mãe de Julia, jornalista:

Minha vó Lira costumava dizer que, antigamente, os filhos que moravam longe sempre vinham pra casa na Semana Santa. A gente ouvia isso no almoço da Sexta-Feira da Paixão, entre uma garfada de vatapá e outra de moqueca de peixe, na casa da ilha. Ela sabia a comida favorita de cada um dos filhos, genros, noras e netos. 

Eu me deliciava com o vatapá e o feijão de leite e sabia que o doce de goiaba em calda - que ela fazia como ninguém - estava me esperando na sobremesa. Amor em forma de comida feita em casa. 

Era tão natural ver todo mundo reunido em volta da mesa, na casinha branca de grades amarelas, que eu cheguei a achar que seria sempre assim. Minha mãe e minhas tias aprenderam muitas receitas com ela, e a gente continuou a se reunir na Semana Santa, mesmo depois que ela se foi. 

Partiu, sem nunca deixar de estar presente. Eu ainda sinto seu carinho quando como as comidas que minha mãe faz. Mais do que receitas, são amor passado de mãe para filha. Mas neste ano, vivendo em outro país e no meio da pandemia, eu sabia que não teria esse almoço em família que tanto alimenta meu coração. E senti que era hora de eu também levar a tradição adiante. 

Foi quase uma necessidade diante do fato de estar longe, quando eu deveria estar perto. Minha mãe me explicou as receitas e fiz, pela primeira vez, vatapá e feijão de leite. Liguei algumas vezes pra saber o ponto certo do vatapá e ouvi de minha mãe: "Ele vai estar bom quando pegar um pouco no fundo da panela. Foi assim que sua vó me ensinou. Mas vatapá é cismado, então todo cuidado pra não estragar". Tive que fazer com camarão fresco, porque aqui não se encontra camarão seco. Eu, Juan e Julia, em plena Oklahoma, comemos o típico almoço baiano nesta Semana Santa. Lembrei de minha avó o tempo inteiro. 

Queria tanto saber mais. Vó, quem te ensinou a fazer vatapá? Seu braço não fica doendo de mexer a panela sem parar por quase uma hora? Sua mãe também cozinhava assim? Também me pergunto por que não aprendi com ela fazer o doce de goiaba. Acho que, naquele tempo, eu ainda não entendia o amor assim, em forma de comida que se prepara para o outro e que se come junto. Mas nunca imaginei que aquelas palavras de minha vó estavam tão fincadas em mim.

Entendi, agora, que a comida foi um jeito de eu trazer pra perto o lar que está distante. É um jeito estranho de sentir, porque a minha casa agora é aqui, nesse lugar onde eu sou uma estrangeira. 

Fazer as receitas de família foi um jeito que encontrei de tentar plantar aqui um pouco de mim, dessas raízes profundas que seguem comigo, não importa quão longe eu esteja do lar onde nasci. 

Talvez por isso eu tenha sentido tão forte a presença de tanta gente que eu amo e que não posso estar junto. 

Julia adorou o feijão de leite. Juan comeu de tudo e repetiu. E eu, de repente, me senti mais nutrida de alegria. Como se esse novo lugar começasse a fazer mais parte de mim.