Nunca foi tão triste uma volta às aulas

Pois é justamente nos abraços e compartilhamentos, no “se enroscar” com o outro que vamos nos construindo

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  • Flavia Azevedo

Publicado em 1 de maio de 2021 às 11:04

- Atualizado há um ano

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O que eu sei é que enquanto homens e mulheres exercem seus poderes de abre e fecha escola, suspende e retoma as aulas presenciais, faz greve ou não faz, eu fico aqui pensando em palavras como “encontro”, “vínculo” e “felicidade”. Essas coisas que dão sentido ao espaço físico da escola porque, sem a materialização dessas palavras, escolas seriam só prédios funcionais e não lugares inesquecíveis. Dizem que tudo vai voltar agora, nessa segunda, junto com as aulas presenciais. Dizem, mas eu não acho. Pelo menos, não agora, do jeito que a volta é anunciada, neste momento da pandemia doida, doída e descontrolada.

Tudo de lá faz falta, eu sei. Tanta falta que, mesmo depois de velhos, antigos colegas de escola costumam se encontrar. A gaiatice, normalmente, é abundante, por maiores que sejam os intervalos (de anos, décadas) entre um e outro abraço. Há uma intimidade construída na mordida do lanche alheio, no compartilhamento do mesmo canudo com colegas, nos abraços suados e gritos de gol. Há imensas amizades nascidas do vaivém de borrachas e lápis. Há amores que até sobrevivem ao ensino médio e seguem para faculdades e formaturas. Mas que, antes de legitimados, existiam era nos sorrisos do recreio e nos beijos escondidos atrás de pilastras.

(Nas relações construídas em salas de aulas, não costumam atuar forças como diferenças sociais e políticas, pode observar.)

Nada é protocolar, na infância. Ou não é infância. Nada é desinfetado, afastado e coberto, na adolescência. Pois é justamente nos abraços e compartilhamentos, no “se enroscar” com o outro que vamos nos construindo. Não fosse assim, as aulas online seriam suficientes e não são, isso é consenso. Por mais que se faça, não é a escola inteira e a falta grita em tela cheia, transbordada em ansiedades, tristezas e silêncios de uma geração já, profundamente, tocada por não estar entre os seus iguais. Sim, lidaremos com isso, quando a hora chegar.

Por enquanto, penso nessa “volta às aulas’, que é o que se apresenta, para alguns, como solução. Antes da vacina. Que, mesmo assim, promete entregar o que falta na escola que veio pra dentro das nossas casas. Falta a convivência e é isso que se pretende resgatar “dentro de todos os protocolos” recomendados. Não sei se os “protocolos” vão funcionar, mas todo mundo conhece a proposta e pode imaginar a alma desse lugar para onde irão as crianças e adolescentes que as famílias autorizarem. Uma nova alma, uma nova escola. Tão desconhecida que ninguém pode dizer que vai “voltar”. É ida, pulo no escuro, descoberta de modos e costumes nunca imaginados.   

Mais umas doses de melancolia. Seria bom perguntar se os/as alunos/as preferem com gelo ou cowboy. Porque agora é o momento de a professora se recusar ao abraço, de tocar no colega ser transgressão, de ser absolutamente proibido “emprestar”. É o fim definitivo do fundão da sala, a revogação do revezamento do campo de futebol, o adeus às conversas de pé de ouvido, a diluição dos bolinhos de adolescentes dando e recebendo colo, nos intervalos. É o medo da morte (e de matar) promovido a inspetor. É o momento de os que estão, presencialmente, nas aulas, se compararem aos que aparecem na tela, de casa. Quem está sendo cuidado, quem está sendo exposto? Passarão a perguntar. Qual o sentido de cuidado? O que significa, neste momento, cuidar?

Junto com as portas, escolas vão abrir novas questões. Duríssimas, pra uma turma que devia se ocupar de viver, apenas. Com alegria. Se não há saúde em permanecer tanto tempo em casa, também lembro de quando meu filho me pediu pra não passar, de carro, diante do campinho onde ele jogava bola, antes da pandemia. Ele disse que seria “jogar sal na ferida”, que preferia não ver o que não podia aproveitar. Agora, tantos meses depois, com o anúncio da possível volta às aulas, lembrei dessa metáfora usada por ele. Olhar, por trás de máscaras e “dentro de todos os protocolos”, a infância que se poderia viver, é “jogar sal na ferida”, nada mais. 

A escola, como deve ser, permanece impossível. Está no passado e no futuro, quem sabe, mas, agora, é, precisamente, uma impossibilidade. A escola não está nos prédios escolares, não adianta ir buscar nem contar essa mentira pra alunos/as de todas as idades. Por mais “adaptadas” e “adaptáveis” aos protocolos que possam parecer algumas crianças e adolescentes, é, exatamente, a capacidade de “não ser” criança e “não ser adolescente” o que vai viabilizar o funcionamento daqueles (não) lugares. Assim, pra mim, não vale. Não nos serve, aqui em casa. Além da certeza prática de que, por causa dos casos de contágio, será “abrir e fechar”, uma outra constatação se levanta desde que a possibilidade de reabertura foi anunciada: jamais, em nenhum momento da humanidade, nunca foi tão triste uma volta às aulas. Desse jeito, não, obrigada.