'Nunca me senti mal', diz primeira criança baiana a tratar leucemia sem quimioterapia

Alexsandro faz tratamento com ácido arsênico no Hospital Martagão Gesteira

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  • Thais Borges

Publicado em 16 de dezembro de 2018 às 05:28

- Atualizado há um ano

. Crédito: Alexsandro veio de Eunápolis com a mãe, Maria de Fátima, fazer o tratamento em Salvador (Foto: Evandro Veiga/CORREIO)

De repente, Alexsandro Gonçalves não conseguia mais brincar. Sentia dores “nas juntas”, não conseguia mexer o pescoço e ficou cheio de manchas vermelhas. A febre não baixava. Aos 13 anos, o menino de Eunápolis, no Extremo-Sul do estado, recebeu um diagnóstico que mudou sua vida: tinha Leucemia Promielocítica Aguda (LPA), um dos tipos mais raros da doença. 

Só que, hoje, já em tratamento, a rotina de Alexsandro é diferente da de outras crianças e adolescentes com câncer. Quase não tem reações: o cabelo não caiu e não sente náuseas. Voltou a brincar – principalmente jogar videogame com os amigos. Tudo isso é possível porque ele é a primeira criança da Bahia a tratar a leucemia sem a quimioterapia convencional. 

Alexsandro está recebendo um tratamento com ácido arsênico no Hospital Martagão Gesteira, que participa do desenvolvimento do protocolo latino-americano com a substância. Isso mesmo: cientistas chineses descobriram que o arsênico, que pode ser usado como veneno e que é atribuído à morte de Napoleão Bonaparte, também pode ser um importante aliado no enfrentamento a esse tipo de câncer. Ou seja, só pode ser usado especificamente contra a LPA, não contra todo tipo da doença. 

O tratamento com o ácido arsênico, que já virou uma realidade em países da Europa e nos Estados Unidos nos últimos cinco anos, está sendo utilizado pela primeira vez em uma criança na Bahia. Na rede pública, Alexsandro é o primeiro paciente infantojuvenil das regiões Norte e Nordeste, de acordo com a médica Juliana Costa, onco-hematopediatra do Martagão Gesteira que é responsável pelo tratamento do menino. “A leucemia dele é um subtipo da leucemia mieloide aguda e o tratamento já é diferente, porque é um tipo de célula muito jovem que contém muitos grânulos. Há uns 30, 40 anos, a maior parte dos pacientes com essa leucemia morria antes mesmo do diagnóstico”, explica Juliana. Naquela época, o percentual de pacientes que conseguia sobreviver à doença não chegava a 50%. Muitos sangravam até a morte em poucos dias; alguns, em poucas horas. Na China, antes mesmo do ácido arsênico, pesquisadores já identificavam o uso do ácido trans-retinoico (Atra) para o combate à doença.

Doença rara Isso porque é uma leucemia muito específica. Entre os diferentes tipos (linfoide e mieloide, que cada uma pode ser aguda ou crônica), a mais comum em crianças é a linfoide aguda. A mais rara é a mieloide crônica, mas LPA chega perto. Só no universo do próprio Martagão, dá para ter uma noção: desde 2012 até hoje, foram apenas cinco pacientes novos com a mieloide crônica. Com a LPA, a média é de dois por ano, entre os 120 novos casos anuais. 

Nela, as células jovens, que acabaram de nascer, não se tornam maduras. Ou seja: os promielócitos – de onde vêm o nome da doença – deveriam passar pelos estágios granulócitos e mieloblastos, até se tornarem mielócitos. Só que isso nunca acontece com quem tem LPA. Essas células imaturas começam a se multiplicar na corrente sanguínea. Essa leucemia é causada por uma alteração nos cromossomos – ocorre uma fusão entre os cromossomos 15 e 17, o que leva à formação de um gene anormal. 

Foi justamente pelo fato de os cientistas saberem qual é a causa da LPA que foi possível chegar aos ácidos. De acordo com onco-hematopediatra, na década de 1960, pesquisadores identificaram que a quimioterapia era capaz de matar as células cancerígenas, mas não há muitos estudos que encontram o motivo para as células estarem se multiplicando – exceto com a LPA. “Esse tratamento é o primeiro que vai aparecer agora com o que chamamos de terapia direcionada, que acredito que seja o futuro”, diz a médica. 

Diagnóstico  As dores de Alexsandro começaram em junho. Vieram as manchas roxas, os sangramentos. A mãe, dona Maria de Fátima dos Santos, levou ao pediatra em Eunápolis, mas o profissional não soube o que se tratava. Levou em um posto de saúde e nada. Enquanto isso, o filho piorava. Piorou tanto que chegou a ficar três semanas internado em um hospital da cidade. 

Na época, disseram à mãe que o menino estava com a taxa de plaquetas muito alta. Cogitaram que tivesse anemia falciforme, mas tudo era inconclusivo. Alexsandro voltou a casa e, oito dias depois, retornou ao hospital. Passou outros 14 dias internado até ser transferido para o Martagão.  Maria de Fátima achou que o filho fosse morrer: 'Nunca imaginei que ele fosse ter câncer' (Foto: Evandro Veiga/CORREIO) Dona Maria de Fátima apenas soube da suspeita de leucemia quando chegou à instituição.“Ninguém nunca chegou a mim para falar nada sobre câncer. Ninguém falava. Nunca imaginei que meu filho teria isso”, contou ela, que é trabalhadora rural.Alexsandro nunca tinha sido internado em um hospital; na verdade, nunca tivera nada mais grave do que uma gripe ocasional. 

Ela só tinha um pensamento: achava que o filho iria morrer. Foi justamente quando conheceu a doutora Juliana, que apresentou o tratamento com arsênico. Pouco antes da chegada de Alexsandro no Martagão, em junho, a médica tinha conseguido autorização do hospital para implementar o guia terapêutico. Ela é uma das integrantes do Consórcio Latinoamericano de Enfermidades Hemato-Oncológicas Pediátricas (Clehop), que desenvolve um protocolo terapêutico único para toda a América Latina. 

Desde que o Martagão decidiu implementar o protocolo, Alexsandro foi o primeiro paciente com LPA no hospital. “Veio esse tratamento maravilhoso. Eu disse para eles fazerem o que fosse preciso para que meu filho ficasse bem”, disse dona Maria de Fátima. 

Por 30 dias, entre setembro e outubro, Alexsandro foi submetido ao tratamento em que o arsênico é combinado ao Atra. Nesse período, diariamente, ele tomava duas doses do Atra (medicamento oral) e recebia 5ml de ácido arsênico em um acesso venoso, ao longo de duas horas. 

Ao final de um mês, foi liberado para passar mais 30 dias em casa. Depois, vai e volta por quatro “ciclos” de um mês cada. No último domingo (9), retornou a Salvador para a segunda fase da medicação. No ano que vem, a expectativa é de que seja liberado para voltar a estudar. Alexsandro teve que deixar a escola, onde cursava o 5º ano na Escola Municipal Paulo Freire, por conta do tratamento. 

‘Nem parecia’ De volta a Eunápolis, nem parecia que passou tanto tempo em hospitais. Passava o dia brincando de videogame na casa dos vizinhos – um Playstation, inclusive, é o que gostaria de ganhar no Natal. “Precisava brigar para voltar para casa”, disse a mãe, aos risos. Alexsandro contou que não sofreu efeitos colaterais com o tratamento (Foto: Evandro Veiga/CORREIO) “Tinha que aproveitar, então aproveitei. Nunca me senti mal, nenhum dia desse mês em casa”, completou Alexsandro. Ela só controlava a quantidade de vezes em que ele saía para a rua mesmo, mas por cuidado. A casa onde moram é construída apenas no cimento, enquanto a rua não tem pavimentação. “Eu que fico controlando, não deixo muito que ele saia por causa do sol, mas ele está bem. Nem parece que tem leucemia”. 

De fato, as reações ao arsênico e a quimioterapia são diferentes, embora os dois tratamentos ocorram da mesma forma: através de acesso venoso, os pacientes recebem as substâncias diariamente, durante o tempo especificado pelo tratamento. 

Só que é como se o ácido arsênico “desligasse” a produção de células que estão se multiplicando. E, para completar, as células são amadurecidas e chegam ao estágio que deveriam chegar. 

A quimioterapia, por outro lado, é um conjunto de drogas que age em diferentes pontos das células, com o objetivo de matar as células cancerígenas. Depois que todas são mortas, o organismo começa a produzir novas células – e o tratamento tem sucesso quando elas se reproduzem de forma normal, não em excesso. 

Por isso, a quimioterapia só age em tumores malignos, não em benignos, quando as células não estão se multiplicando. Além disso, 5% das crianças que fazem quimioterapia e que ficam curadas têm chance de desenvolver um câncer secundário na vida adulta – graças aos efeitos do próprio tratamento.  Nos dois casos, é preciso que os pacientes sejam acompanhados por cinco anos até serem considerados completamente curados da leucemia. 

Trombose O pequeno Miguel Correia, 7, é um dos pacientes que trata a LPA com a quimioterapia convencional no Martagão Gesteira. Quando ele começou o tratamento, em setembro de 2016, o hospital ainda não tinha o protocolo. Na época, chegou à instituição com uma taxa de mais de 120 mil leucócitos no sangue. Só para dar uma ideia, o índice já é considerado alto a partir de 10 mil. 

“O grupo de pesquisadores mais famoso sobre leucemia tem apenas três, quatro casos com mais de 100 mil. E ele tinha”, lembra a médica Juliana Costa. O quadro era grave, mas Miguel respondeu bem ao tratamento. Agora, está a poucos meses de concluído, em fevereiro de 2019. Depois, é só continuar o acompanhamento.  Miguel começou o tratamento com a quimioterapia convencional em 2016. A previsão é de concluir em fevereiro (Foto: Evandro Veiga/CORREIO) Mesmo assim, o percurso foi difícil. “Fiquei desesperada quando soube. Ele perdeu o cabelo por causa da quimioterapia e teve até uma trombose. Hoje está bem”, conta a mãe do garoto, a dona de casa Eronice Correia, 30. Durante a quimioterapia, ele ficava tanto tempo de cama que sofreu a trombose. 

América Latina No Clehop, a ideia é fazer com que todos os países da América Latina tenham protocolos terapêuticos iguais para a doença. Isso porque, por ser genética, a LPA tem perfis diferentes na Europa e nos Estados Unidos. Entre os latinos, a incidência é maior, por exemplo. Assim, um dos objetivos é conhecer a própria população e melhorar os índices de cura.  

Por isso, a pesquisa conta com integrantes da Argentina, do México, do Chile e de todos os países da América Central. O grupo vem desenvolvendo o estudo há um ano, com apoio do St. Jude Children’s Research Hospital, nos Estados Unidos. 

O problema é que o tratamento ainda é mais caro do que a quimioterapia convencional. Enquanto o SUS paga ao Martagão R$ 1,7 mil pelo tratamento tradicional, o ácido arsênico custa cerca de R$ 10 mil para um mês. O arsênico só pôde ser usado no hospital por conta de doações. No fim, além das doações, a própria instituição completou o que faltava para o pagamento. 

Mas como o tratamento com arsênico é muito mais rápido - dura seis meses, contra dois anos da quimioterapia convencional –, é possível que haja economia a longo prazo. “A partir desses dados, vamos mostrar que é melhor para o paciente e para o SUS, porque o sistema vai economizar em outros aspectos: vai ter menos internação, menos transfusão”, diz a médica Juliana Costa.

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Tratamento com arsênico já foi submetido à comitê que analisa técnicas do SUS O tratamento com ácido arsênico para a Leucemia Promielocítica Aguda (LPA) é aprovado pela Agência Nacional da Vigilância Sanitária (Anvisa) no Brasil. No entanto, quando foi proposto ao Sistema Único de Saúde (SUS), em 2014, não foi aceito. 

Em nota enviada ao CORREIO, o Ministério da Saúde informou que, para que novas tecnologias sejam incorporadas ao SUS, e isso inclui tratamentos, é preciso analisar a eficácia, a efetividade e o custo-benefício e acompanhada de regras precisas quanto à indicação e forma de uso. Quem é responsável por essa análise é a Comissão Nacional de Incorporação de Novas Tecnologias ao SUS (Conitec), criada em 2012 com o objetivo de assessorar o Ministério da Saúde na decisão de incorporação de novas tecnologias no SUS. 

“Desta forma, o Relatório de Recomendação da Conitec não indicou a incorporação do trióxido de arsênio para Leucemia Promielocítica Aguda (LPA), devido às evidências incertas e à existência de opções terapêuticas disponíveis no SUS”, dizem, em nota. 

Ainda assim, segundo o Ministério, devido ao caráter agudo da doença, a Conitec recomendou a criação de uma Linha de Cuidado para o diagnóstico e tratamento da leucemia e seu subtipo LPA – ou seja, ações de promoção, prevenção, tratamento e reabilitação. Essa linha de cuidado foi publicada pelo órgão federal ainda em 2014. 

“Ressalta-se ainda que o tratamento oncológico no âmbito do SUS, independentemente do tipo de tumor, deve ser atendido em estabelecimento habilitado em Oncologia. A assistência especializada abrange sete tipos de ações a depender de cada caso: diagnóstico, cirurgia oncológica, radioterapia, quimioterapia (oncologia clínica, hematologia e oncologia pediátrica), medidas de suporte, reabilitação e cuidados paliativos”, completa o ministério. 

Na época em que foi proposto ao Conitec, o tratamento com arsênico tinha poucos relatos no Brasil e no mundo. Agora, a médica Juliana Costa espera que, até 2020, o tratamento seja novamente proposto para ser incorporado ao SUS, com a exposição de casos como o de Alexsandro. Além dele, outra criança, em São Paulo, também está passando pelo protocolo.