O acaso que me levou ao front

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  • Paulo Sales

Publicado em 20 de setembro de 2021 às 05:01

- Atualizado há um ano

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A maioria dos livros que lemos nasce do nosso interesse em conhecê-los. Guardamos o nome de um autor, seguimos a dica de alguma resenha, acatamos a sugestão de um amigo ou mesmo nos encantamos com a capa ou o prefácio de uma obra que pegamos na prateleira de uma livraria (algo infelizmente cada vez mais raro). Mas o que dizer daqueles que nos chegam por um mero acidente do acaso e acabam nos surpreendendo e nos enlevando com sua força desconhecida?

Encontrei recentemente uma antiga – embora bem conservada – edição de Nada de Novo no Front, da coleção Grandes Sucessos da editora Abril. São aqueles livros de capa branca que fizeram a alegria de diferentes gerações de leitores. Estava na casinha de doação de livros que fica do outro lado da minha rua. Passeava com Pudim pelo gramado e percebi alguns volumes lá dentro. Eu mesmo já coloquei muitos ali, dando um novo destino a obras que enchiam a estante daqui de casa.

Peguei o clássico pacifista de Erick Maria Remarque junto com O Planeta do Sr. Sammler, de Saul Bellow, e Taras Bulba, de Nicolai Gógol. Todos da mesma coleção e todos com um carimbo na primeira página, onde se lê: Acérvulo José Carlos Pimenta. Não sei de quem se trata, mas desde já o agradeço por ter me proporcionado uma leitura tão poderosa. Sabia da importância do livro como libelo contra o horror da Primeira Guerra, mas não tinha ideia do quanto era – é – bom.

Remarque nos lança para dentro do inferno do front. E lá acompanhamos a devastação física e mental de um bando de garotos que matavam e morriam sem ter a menor ideia do real sentido de tudo aquilo. É um relato sem pudor: nos deparamos com soldados sem cabeça, sem pés, sem intestinos, cavalos urrando de dor, bosques destroçados. Ou, para usar as palavras do autor:

“Bombardeio, fogo cerrado, fogo de barragem, gás, minas, tanques, metralhadoras, granadas de mão… são apenas palavras, mas encerram todo o horror do mundo”. Remarque diz mais: “Para nenhum homem a terra é tão importante quanto para um soldado. Quando ele se comprime contra ela demoradamente, com violência, quando nela enterra profundamente o rosto e os membros, na angústia mortal do fogo, ela é seu único amigo, seu irmão, sua mãe.”

Mas os momentos que mais me marcaram foram aqueles em que ele descreve o aniquilamento da juventude daqueles garotos. Deixavam de ser meninos para se tornarem algo sem forma, perdidos no tempo sem tempo da guerra, vendo a própria inocência se diluir em carnificina. “Juventude? Não temos mais de vinte anos. Mas quanto a sermos jovens? Quanto à mocidade? Isto já acabou há muito tempo. Somos uns velhos”.

Ou então: “Hoje, passaríamos pela paisagem de nossa juventude apenas como viajantes. Os fatos nos consumiram: como os comerciantes, sabemos distinguir as diferenças, e, como carniceiros, sabemos reconhecer as necessidades. Já não somos despreocupados; vivemos numa terrível indiferença. Se estivéssemos lá, será que viveríamos? Desamparados como crianças, e experientes como velhos, somos primitivos, tristes e superficiais… acho que estamos perdidos.”

Nada de Novo no Front integra uma seleta confraria de romances que nos fazem repensar o que construímos até aqui: décadas, séculos, milênios dizimando nós mesmos, promovendo ódio e brutalidade em escala industrial, extinguindo pessoas, campos e cidades como quem pisa numa plantação de algodão. E pensar que tudo isso chegou até mim como um esbarrão do destino, em meio a um passeio despretensioso na praça com meu cachorrinho.