O BBB 20 não foi como era: como o programa engajou discussões de feminismo, machismo e racismo na quarentena

Entenda os motivos para essa temporada do reality, que chega ao fim nesta segunda-feira (27), ser considerada histórica

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  • Thais Borges

Publicado em 25 de abril de 2020 às 08:27

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Reprodução/TV Globo

A promessa era de que seria um programa ‘histórico’. Desde que foi anunciada, a 20ª edição do Big Brother Brasil (BBB), reality que está no ar desde 2002, na TV Bahia/Globo, tinha a proposta de ser uma edição comemorativa. Com a proposta de ter participantes inscritos e convidados - a maioria de influenciadores digitais -, a temporada teria releituras de provas e lembranças de melhores momentos. 

De fato, o programa que acaba nesta segunda-feira (27) teve uma caminhada considerada histórica por pesquisadores e telespectadores, mas não necessariamente apenas pelos motivos iniciais. O BBB 20 deu certo - e os números de audiência estão aí para comprovar isso, com 165 milhões de pessoas alcançadas em três meses - por uma soma de fatores que parte mesmo da escolha do elenco, mas passa por aspectos como a própria pandemia do coronavírus e a falta de programação inédita de entretenimento na televisão aberta. 

Durante praticamente metade da temporada, os brasileiros estavam em casa. Coincidência ou não, foi justamente nessa fase do reality que vieram os principais números de votação. Um único paredão, disputado pela cantora Manu Gavassi, pela influencer Mari Gonzalez e pelo arquiteto Felipe Prior, teve 1,5 bilhão de votos - um recorde mundial que chegou a ser documentado na imprensa internacional, a exemplo da revista Variety. 

A internet parecia ter escolhido lados: de um, apoiadores de Manu, que iam de Bruna Marquezine a Larissa Manoela; do lado de Prior, Neymar e Anitta. A disputa tomou ares políticos: o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) se meteu na história, apoiando o arquiteto, enquanto o ex-ministro Fernando Haddad (PT-SP) disse ter ficado feliz com a saída dele. 

De repente, eram dois confinamentos amalgamados - um do programa, outro de quem tinha  pouco a fazer para se entreter além de ver o programa."É uma grande válcula de escape para as pessoas, em suas casas, extravasar e se identificar com aquele momento na televisão. Tudo que acontece naquele universo tem relação com o que as pessoas estão vivendo", diz a pesquisadora Ariane Holzbach, doutora em Comunicação e professora do curso de Estudos de Mídia da Universidade Federal Fluminense (UFF). Nas redes sociais, eram comuns os pedidos para que o programa não acabasse. Não deu outra: a Globo decidiu estender o BBB por quatro dias além da final inicialmente prevista para a última quinta-feira (23). Assim, a final do BBB ficou mais próxima do começo da segunda temporada do reality show culinário do canal, o Mestre do Sabor, que terá início nesta quinta-feira (30). Por enquanto, o BBB é a única produção de entretenimento global inédita.  Inicialmente, o programa foi dividido entre participantes convidados (o 'camarote') e inscritos (a 'pipoca) (Foto: Globo/Victor Pollack) Três dimensões Todas as outras, inclusive as novelas, são reprises. Diante do coronavírus, a emissora, portanto, apostou no ao vivo - seja no aumento de tempo para os programas jornalísticos, seja no reality. “A Globo tinha essa intenção de construir esse BBB histórico diante de uma fórmula já desgastada, que já não rende em outros países e apostou nesse elenco de microcelebridades e de pessoas desconhecidas, já pensando em engajar os seguidores dessas microcelebridades”, pontua a professora Juliana Gutmann, pesquisadora de televisão da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia (Ufba). Esse é o caso de nomes como Manu Gavassi, Rafa Kalimann, Babu Santana e Bianca Andrade, conhecida como Boca Rosa. Os três primeiros, inclusive, estão entre os quatro participantes que podem chegar à final. Além deles, só restou a médica anestesiologista Thelma Assis, a única representante do grupo de “anônimos”. 

Até o final da temporada, os participantes famosos ganharam mais de 22,4 milhões de seguidores em suas redes sociais (passando, assim, de 64 milhões, na soma total). Já o grupo de inscritos, que tinha cerca de 205 mil seguidores, cota hoje com mais de 28 milhões. 

Para Juliana, o isolamento físico torna a audiência mais predisposta ao consumo da tv aberta, mas também das plataformas de streaming. O sucesso das lives está aí para comprovar isso. 

"O BBB tem três dimensões, pelo menos: tem o que é editado e que passa na Globo, tem o do pay-per-view e tem o das redes sociais. Ele transborda o espaço clássico da televisao aberta", explica Juliana.  Tiago Leifert apresentou o programa pelo quarto ano (Foto: Globo/Victor Pollack) Para o diretor-geral do BBB, Rodrigo Dourado, são muitos os fatores que levaram ao grande engajamento desta edição. "Colocar o BBB no ar é um dos maiores desafios da TV mundial. E, na reta final, tivemos ainda o desafio de levarmos entretenimento para tanta gente nesse momento difícil por que estamos passando", diz.

A própria produção teve que se adaptar, na pandemia, para garantir a segurança da equipe. "É bom saber que em um momento como esse, o programa tem a capacidade de unir as pessoas, mesmo que seja através de uma prova, na votação e na torcida por um candidato", afirma. 

Narrativa Um dos momentos mais marcantes da temporada foi justamente na noite do dia 16 de março, quando os participantes foram informados sobre a pandemia. Na ocasião, o apresentador Tiago Leifert recebeu um médico infectologista para tirar dúvidas do elenco. 

Logo após a conversa, as duas médicas entre as sisters - além da anestesiologista Thelma, a ginecologista Marcela McGowan foi uma do time dos inscritos - ensinaram à turma como lavar as mãos de forma adequada. 

Em outros países onde o Big Brother local também está no ar, o coronavírus também influenciou no jogo. Na Itália, um dos países mais afetados pela Covid-19, os participantes puderam ligar para a família depois de serem informados sobre a situação no país. Uma das concorrentes, inclusive, desistiu da disputa. Já a versão canadense, que seria finalizada no dia 21 de maio, foi encerrada sem vencedores ainda em março. 

No entanto, os destaques das narrativas foram as discussões sobre racismo e machismo - e, por consequência, do feminismo - levantadas a partir de ações dos participantes. Desde o início, alguns episódios - e a reação do público a eles - traçaram o caminho de algumas das sisters e brothers. 

O principal deles foi quando a médica Marcela e a advogada Gizelly Bicalho descobriram um plano dos homens para seduzir as participantes famosas que eram comprometidas. A ideia era fazê-las “se queimar” com a audiência. Isso, logo nas primeiras semanas, fez com que as mulheres - que assumiam um discurso feminista - fossem alçadas a uma categoria de “fadas sensatas”. 

Como em outras edições, também houve pelo menos dois participantes acusados de assédio lá dentro - o ginasta Petrix Barbosa e o hipnólogo Pyong Lee. Já após a saída de Felipe Prior, a revista Marie Claire publicou uma denúncia de que três mulheres acusavam o arquiteto de estupro. Depois da publicação, uma quarta mulher também disse ter sido vítima de violência sexual por parte dele.  O quarto branco, presente em outras edições, voltou nesta temporada (Foto: Globo/Paulo Belote) Gênero e raça No entanto, ao longo da edição, falas e atitudes - especialmente por parte das mulheres -  diante da médica Thelma e do ator Babu, os dois únicos negros da casa, foram apontadas pelo público como racistas. Assim, o debate sobre as opressões de raça e gênero ficaram ainda mais fortes nas últimas semanas. “Selecionaram uma pessoa negra para dar conta da questão racial, que foi Babu; as mulheres brancas reivindicando a questão feminista e de diversidade de gênero; e a mulher negra, com essa conexão de raça e gênero, que conseguiu um deslocamento de classe. Para mim, tudo isso foi pensado para causar o que causou aqui fora”, afirma a pesquisadora Carla Akotirene, doutoranda em Estudos sobre Mulheres, Gênero e Feminismo na Ufba. Para Carla, que é autora dos livros Interseccionalidade e Ó Paí Prezada, os ataques sofridos por Thelma nas últimas semanas - especialmente após ter votado em Babu uma vez - revelam uma falta de conteúdo político entre alguns dos espectadores que consomem o programa através das redes sociais. 

"Parte dessa geração do movimento negro, que é a dos anos 1990 e 2000, que não foi formada por intelectuais como Suely Carneiro e Luiza Bairros, se mostrou mais ativa a propor a interação da raça sem propor a união com qualquer outro grupo. Eles defendem que Thelma é palmiteira, por ser amiga das mulheres brancas. Isso trouxe à  tona a necessidade de formar (politicamente) essa geração", defende. 

O Twitter, inclusive, tem um papel forte na construção dessas narrativas, como explica a professora Juliana Gutmann, da Facom. Na plataforma, além dos usuários que comentam o programa, é possível encontrar perfis que fazem a transcrição das cenas do reality e compartilham vídeos durante todo o dia. “As tretas político identitárias funcionaram e o programa extravasou os limites da própria Globo, enquanto o Twitter teve uma dimensão central nisso. O Twitter atuou como uma espécie de co-autor com os memes, as hashtags, a cultura do cancelamento. Muitos dos memes que aparecem no Twitter foram incorporados pela própria Globo”, argumenta Juliana. Para a professora Ariane Holzbach, da UFF, esse aumento da audiência do programa nos últimos tempos tem a ver com o fato de que a televisão aberta finalmente está prestando atenção a essas discussões. Parte da audiência jovem hoje sequer acompanha televisão, ainda que consuma audiovisual, devido ao distanciamento desses temas. 

Enquanto a tv aberta ignorava questões de gênero e raça, outros espaços, como plataformas de streaming e o YouTube, produziam conteúdo que contemplasse esses aspectos. 

“Mas é claro que se tratando de televisão hegemônica, no Brasil, a gente não deve esperar que a abertura seja completa. A gente continua vendo novelas com poucos atores e atrizes negros. Só que a TV está começando a perceber que pode ser interessante atrair essa audiência que estava distanciada”, pontua. 

Ao mesmo tempo em que a professora acredita que os altos números de audiência não devam continuar após o fim da quarentena, ela questiona outro aspecto. “Será que a televisão vai conseguir manter esse debate aberto, levando em conta que existe uma grande onda conservadora no Brasil, para quem não é interessante esse debate? Essa é uma coisa que a gente vai ver nos próximos meses”, diz.