O céu da cidade do Salvador

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Publicado em 26 de abril de 2020 às 13:06

- Atualizado há um ano

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Hoje eu queria mesmo era escrever que a pandemia acabou. Daí poderíamos todos nos encontrar no Farol da Barra pra entoar um cântico de liberdade e assistir o por do sol colorindo o céu. Por sinal, o mais lindo do mundo. A gente ia se abraçar até drenar toda lágrima represada nos corações solitários afogados pelo isolamento. O ambulante voltaria a ganhar seu sustento. O comerciante a empregar desempregados. Os hotéis receberiam nossos turistas. E a vida recomeçaria. Provavelmente de um novo jeito normal de viver. Mas voltaríamos ao movimento orgânico da vida.

Era sobre isso que eu queria escrever hoje. Mas ainda não chegou a hora. Vivemos mais uma semana de isolamento. Horizontal ou vertical? Nem sei mais te dizer. Percebo mais carros indo e vindo pela minha janela. E quando saio para fazer as compras de casa, vejo mais gente andando pelas ruas. E os números de casos e mortes só aumentam.

Não estou pessimista. Pelo contrário, acho que aqui na Bahia estamos indo muito bem até agora. Tirando o sul do estado que demonstra um crescimento acelerado, as outras regiões têm caminhado a bons passos. Em Salvador, apesar de sermos a cidade mais populosa, os números crescem moderadamente. Não quero ver ninguém morrendo. Muito menos gente próxima. Mas não deixo de sentir a dor no peito quando as notícias informam mais uma morte de algum desconhecido pra mim, mas amado por alguém. Somos todos uma família, lembra? Filhos do mesmo Pai. Vivendo no mesmo mundo. Infelizmente, em condições sociais muito diferentes. E no meio disso tudo, como nunca antes em minha vida, me pego angustiado com tamanho abismo de desigualdades em que a família humana vive.

Essa foi uma semana intensa: triste, caótica e vergonhosa. Hoje recebi uma mensagem no WhatsApp dizendo que aqui no Brasil estamos vivendo a pandemia mais emocionante do mundo. Enquanto a covid-19 varre parte da população para debaixo da terra em valas coletivas, o vírus da intransigência cresce exponencialmente no cenário político-econômico brasileiro. E tanto faz a sua e a minha posição partidária. Você e eu estamos à mercê de lunáticos ególatras e inconsequentes. Guerra de poder no meio de um furação pandêmico é a mistura que definitivamente não deveríamos estar vivendo. Enquanto os ditos poderosos cospem suas salivas virulentas em pronunciamentos prolixos e sem sentido, nós sofremos sem direção em nossos modestos barquinhos da sobrevivência.

Meus amigos empresários (pequenos, médios ou grandes) já reduziram salários, jornadas e faturamento. Aqueles que ainda não demitiram, já se preparam para talvez terem que fazer o tipo de corte que tanto lutaram para não serem obrigados a fazer: pessoas. É um efeito cascata. Fico pensando se não existiria outra forma de passarmos por tudo isso. Quem sabe com governos realmente competentes e preocupados com estrutura para eventuais calamidades. Não tenho respostas que se igualam ao número de perguntas em minha mente.

Como pai, quero o melhor para meu filho. Hoje só tenho 1 garotinho. Meu Bento. Aqui em casa queremos ter mais filhos. No mínimo mais 1. Parece loucura, eu sei. Ainda mais falar sobre isso no meio de uma pandemia. E te confesso que tanto acontecimento triste quase abala minha convicção. Mas não o suficiente para desistirmos. Não tem como não pensar em futuro quando o assunto são filhos. Olhar para a realidade temporal que estamos vivendo não pode comprometer o efeito da esperança que nos move rumo ao amanhã.

Estamos isolados aqui em casa. Mas foi preciso romper barreiras. Bento nos pregou um susto. Na sexta-feira, no meio de mais uma de suas agitadas brincadeiras comigo, acabou machucando o braço. Pensei que seria só mais um machucadinho normal. Mas o choro de dor rasgou o momento da brincadeira e nos arremessou direto para uma emergência ortopédica. Bento teve uma luxação no antebraço direito. Graças a Deus, não quebrou. Está com uma tala de gesso sustentada por uma tipóia. Dizem que não existe nada tão ruim que não possa piorar, não é mesmo? A experiência de ir ao hospital sozinho com ele no meio de uma pandemia foi apavorante. Máscara, colo, álcool e envio de mensagens pra mamãe a cada 5 minutos. A opção foi irmos eu e ele para evitar que mais um adulto da casa estivesse exposto. Ele foi bem atendido. E na segunda-feira enfrentaremos tudo novamente para uma revisão e - tomara - retirar a tala.

Mas sabe de uma coisa? Enquanto eu estava ali naquele hospital, com meu garoto de 3 anos chorando de dor, me lembrei do pior acontecimento da semana em Salvador. E meu coração não suportou a tristeza e me derrubou em lágrimas. O coronavírus continua na cidade em ritmo acelerado. Você e eu sabemos disso. Se você acompanha noticiários, lê jornais ou simplesmente é sensível ao que acontece na sua cidade, vai ver que o pobre passou a semana amontoado em filas de supermercados para sacar benefícios de R$ 55 que o governo liberou para estudantes comprarem comida. E no meio de tudo isso, a chuva derrete o resto de esperança que alguns destes desamparados possui.

O céu de Salvador ganhou mais 2 estrelas. Agora não são apenas as conhecidas Três Marias que brilham no céu. Chegaram mais 2. Maria da Conceição e Maria Eduarda morreram soterradas na comunidade do Castelo Branco na quinta-feira. A bebê de 4 meses não morava com a avó. Os pais a levaram pra matar a saudade nascida com o isolamento. Diarista, dona Maria da Conceição estava passando mais tempo em casa. As faxinas foram suspensas. É o “fique em casa pra ficar segura”. Não foi a pandemia viral que matou as Marias. Foi o vírus mais mortal da humanidade: a desigualdade. A casa na encosta foi levada pela lama da indiferença: a sua, a minha e a nossa.

Continuo na angústia dos meus pensamentos:

Será que as 2 Marias tiveram tempo de chorar de dor antes de se tornarem as novas estrelas brilhantes no céu da cidade do Salvador?

Isolado há 5 semanas, Gustavo Teles.