Acesse sua conta
Ainda não é assinante?
Ao continuar, você concorda com a nossa Política de Privacidade
ou
Entre com o Google
Alterar senha
Preencha os campos abaixo, e clique em "Confirma alteração" para confirmar a mudança.
Recuperar senha
Preencha o campo abaixo com seu email.

Já tem uma conta? Entre
Alterar senha
Preencha os campos abaixo, e clique em "Confirma alteração" para confirmar a mudança.
Dados não encontrados!
Você ainda não é nosso assinante!
Mas é facil resolver isso, clique abaixo e veja como fazer parte da comunidade Correio *
ASSINE

O dever de não esquecer

  • D
  • Da Redação

Publicado em 22 de outubro de 2022 às 05:00

. Crédito: .

Noite dessas de insônia, ouvindo músicas num aplicativo de streaming, achei o áudio de um vídeo postado por Norah Jones em 19 de março de 2020. De moletom verde, Norah canta ao piano Patience, uma música do Guns N' Roses. Ao ver esse vídeo pela primeira vez, eu já estava trancada em casa há dois dias, era o início da quarentena, às voltas com tutoriais de aulas remotas. Escutar essa gravação – o que faço enquanto escrevo esta crônica - dispara em mim uma série de memórias sobre a pandemia. 

Intrigada com o fato de que muitos parecem ter tornado irrelevantes as lembranças dos horrores vividos naquele período, decidi reler a transcrição de uma conferência proferida em 2003 pelo filósofo francês Paul Ricoeur. Em sua fala, entre outras questões, ele aborda o dever de não esquecer. Revisitar esse texto, me fez pensar nos quase 690 mil brasileiros mortos até agora. Para termos a dimensão metafórica da tragédia, é como se a população dos municípios de Feira de Santana (cerca de 620 mil pessoas) e de Irecê (em torno de 70 mil) desaparecesse tragicamente. 

Confesso que só de imaginar, por alguns minutos, essas duas cidades inteiramente desertas me deu um nó na garganta. Sinto que algo de nossa inteireza parece ter sumido também ao longo da pandemia. Para Paul Ricoeur, o dever de fazer memória se justifica por nosso débito com as vítimas, que reivindicam justiça. É em nome delas que não devemos esquecer. Mas, por que parecemos ter esquecido? Nesse caso, Freud explica, e é a ele que este autor recorre, examinando alguns conceitos relacionados à psicanálise, contidos em Luto e Melancolia e em outros escritos. 

Repetir não equivale a rememorar, pontua em certo trecho, observando que é pela narrativa que promovemos o resgate da memória, entre estratégias de lembrança e de esquecimento. Essas possibilidades de variações narrativas abrem brechas a atravessamentos e a manipulações que, como escreve Ricoeur, “enxertam-se diretamente no trabalho de configuração: evitamento, evasão, fuga”. Feridos coletivamente, processamos nossas dores individualmente, não sem considerar as pressões psicológicas e sociais exercidas sobre nós. 

E, nesse ponto, o filósofo francês cita o histórico decreto ateniense de 403 a.C. que, no contexto de uma anistia, proibia os seus cidadãos de recordarem os crimes políticos, após o fim da Guerra do Peloponeso. Obrigados a prestarem um juramento, eles prometiam ao Estado: “não recordarei as infelicidades”. O termo infelicidade é usado por Paul Ricoeur, constando também como “males” em outros textos. O certo é que todo processo de esquecimento pressupõe um apagamento. 

A releitura de Paul Ricoeur, que se mistura à imagem de Norah Jones cantando Patience ao piano em minha memória daqueles primeiros dias de medo e incerteza, termina citando Isack Dinesen. A frase da escritora dinamarquesa foi usada pela filósofa estadunidense Hannah Arendt em um dos capítulos de seu livro, A Condição Humana. Pois bem, termino esta crônica do mesmo modo: “Todas as tristezas podem ser suportadas se você as colocar em uma história ou contar uma história sobre elas”. 

 Kátia Borges é escritora e jornalista