O dia que Ilhéus, assim como Bacurau, resistiu ao ataque de gringos armados

Cidade enfrentou à bala americanos e ingleses que tentaram exterminar seu povo

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  • Da Redação

Publicado em 28 de abril de 2020 às 05:10

- Atualizado há um ano

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A cidade do interior da Bahia mais afetada pelo novo coronavírus é Ilhéus, no sul do estado. Pelos últimos dados oficiais divulgados passa de 150 o número de pessoas diagnosticadas com a covid-19.

No fim deste mês, em 23 de abril, os católicos comemoram o dia de São Jorge. O santo guerreiro da Capadócia batizou a primeira vila, que daria nome ao famoso município cacaueiro: São Jorge dos Ilhéus -- há, no entanto, uma versão oficial que garante que o nome não é uma reverência sacra, mas, sim, ao escrivão da corte portuguesa Jorge Figueiredo Corrêa, donatário da terra.

Longe das controvérsias, a coluna desta semana homenageia o povo ilheense a partir de uma história que envolve mistério e resistência, encontrando ecos no cinema. Em 1907, Ilhéus foi atacada por estrangeiros armados, assim como a fictícia Bacurau, do filme homônimo de Kleber Mendonça Filho, sucesso nacional de bilheteria em 2019. Cartaz do filme Bacurau (2019), dirigido pelo pernambucano Kleber Mendonça Filho (Foto: Divulgação) O ataque a Ilhéus aconteceu em 25 de novembro. Bem pertinho da hora do almoço, aproximadamente nove estrangeiros, montados a cavalos e fortemente armados com pistolas e metralhadoras, começaram a disparar em prédios públicos e em pessoas comuns que passavam pelas ruas do centro. Alguns dos algozes estavam vestidos com a farda do exército americano.

Diferente do filme Bacurau, no qual a motivação ao extermínio parte de um jogo sanguinário, no sul da Bahia as reais circunstâncias nunca foram devidamente esclarecidas, muito embora a repercussão tenha sido enorme. O jornal americano The New York Herald destacou o fato com a devida resposta do governo federal, dada pelo Barão de Rio Branco, patrono da diplomacia brasileira.

Assim como em Bacurau, houve contra-ataque. E rápido. Quando os primeiros disparos zuniram pelos ares, comerciantes, moradores e jagunços sacaram suas pistolas do coldre e devolveram a investida. Um dos atiradores, o inglês Philip Davies Gruthorp, tombou sem vida. Do outro lado da trincheira, não houve mortos.

Era corriqueiro ter muita gente armada por aquelas bandas. À época, a cidade era marcada pelas constantes disputas dos coronéis enriquecidos com a cultura do cacau.  Nos anos seguintes, o ouro orgânico iria ter uma valorização absurda passando a ser negociado, em 1925, na própria bolsa de valores de Nova Iorque. Em 1913, seria aberto o famoso Bataclan, atrativo para o gasto de pequenas fortunas entre boas bebidas e afamadas mulheres. Imagem antiga de Ilhéus, durante o período de riqueza do cacau (Foto: Acervo de Ilhéus)  Na troca de tiros, a resistência acuou os baderneiros. O ricochete forçou a fuga.  Sem conhecer direito as veredas da região, os gringos foram capturados naquele mesmo dia no distrito de Almada, por uma diligência da Polícia Militar. Na liderança do grupo estava o brasileiro Sebastião Magalhães, mais conhecido como Magali. Inquirido sobre o motivo de liderar o ataque, ele teria assinado um documento dizendo que recrutou os estrangeiros para estabelecer um governo estadual "honesto na Bahia". Os oito sobreviventes foram presos e julgados nos anos seguintes.

A hipótese mais aceita é que o ataque estrangeiro tenha sido uma forma de desestabilizar o mandato de João Marcelino de Sousa (1904-1908), justo em uma das áreas mais prósperas do estado. Na época, existia uma manobra chamada “política dos governadores”, uma costura que permitia que governadores e o presidente da República, em apoio mútuo, administrassem sem qualquer tipo de oposição legislativa. Os gringos, soldados mercenários, teriam sido contratados por Magali para criar uma instabilidade.  

A história deste ataque está contada no livro Crônica da capitania de São Jorge dos Ilhéus, escrita por João da Silva Campos e editada, em 2006, pela Universidade Estadual de Santa Cruz. Capa do livro Terra do Sem-Fim, de 1943. Jorge Amado narra a disputa de terra dos coronéis e o poder de resistência do povo (Foto: Reprodução) Em um outro, Terra do Sem-Fim, um clássico da literatura brasileira, Jorge Amado escreve sobre a disputa dos coronéis pelo controle da região e a força do cacau como símbolo de poder.  Mas, o ímpeto da história não está nos personagens poderosos, tampouco em suas disputas comezinhas e, sim, naqueles que vencem a mata, plantam, colhem e tratam o fruto. Aqueles ilheenses que, acima de tudo, resistem.

Seja a um ataque armado, sejam aos poderosos, seja ao vírus.

[Coluna dedicada a todo povo de Ilhéus, que vai vencer e resistir à pandemia].