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Editorial
Editorial
Publicado em 15 de abril de 2018 às 04:00
- Atualizado há um ano
As cenas dos carros subindo pelo passeio para escapar do trânsito inteiramente travado, na última quarta-feira, por causa dos protestos contra a prisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, chocaram e provocaram indignação, mas não são raras em Salvador. Manifestações, sejam elas de caráter político, de categorias profissionais ou mesmo de moradores revoltados com a violência em suas comunidades, acontecem com uma frequência que traz ansiedade e incômodo para o dia a dia de quem precisa transitar pela cidade, seja de carro ou de transporte coletivo.
O pior é que quase a totalidade desses protestos segue o mesmo modus operandi e parece ter igual propósito: impedir o direito de ir e vir e, dessa forma, atrair a máxima atenção possível para a causa em questão, mesmo quando ela só interessa a um número limitado de pessoas diante da imensa quantidade de cidadãos afetados.
Na quarta-feira foram os manifestantes favoráveis a Lula, mas na semana retrasada quem travou o trânsito na mesma região do Iguatemi, com reflexos em boa parte da cidade, e isso durante quase sete horas, foram os rodoviários dos micro-ônibus ‘amarelinho’, como é conhecido o Subsistema de Transporte Especial Complementar (Stec). Teve ambulância com dificuldade para fazer atendimento, gente que não conseguiu chegar ao trabalho a tempo, usuários reclamando do metrô lotado e da demora na espera nos pontos de ônibus.
Se formos retroceder ainda mais no tempo, vamos lembrar que, em fevereiro, os rodoviários deixaram de circular em protesto contra a reforma da Previdência, levando muitos passageiros a seguirem a pé pelas ruas e avenidas. Ou da carreata de taxistas insatisfeitos com a regularização dos aplicativos de transporte, como o Uber, que paralisou as avenidas ACM e Paralela. Ou das incontáveis manifestações de moradores revoltados com a violência em suas comunidades, muitas vezes resultado de ação da polícia, fechando o trânsito com galhos, pneus, ateando fogo e usando qualquer tipo de artifício para impedir a livre circulação dos veículos.
Além dos transtornos causados no cotidiano do soteropolitano, ainda há outro aspecto a ser levado em conta acerca das consequências que esse tipo de manifestação traz para Salvador: os prejuízos financeiros. A Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo da Bahia (Fecomércio) calcula que, no dia da manifestação contra a prisão de Lula, só na região do Iguatemi, as vendas de lojas e estabelecimentos caíram entre 20% a 25% no período das 15h às 22h.
Motivadas por esses dados, a Fecomércio e mais quatro entidades - Associação Comercial da Bahia (ACB), Federação das Câmaras de Dirigentes Lojistas da Bahia (FCDL), Câmara de Dirigentes Lojistas de Salvador (CDL) e Federação da Agricultura do Estado (Faeb) – divulgaram, na sexta-feira, um manifesto do setor produtivo baiano. Com o mote ‘Salvador não pode parar’, o manifesto chama a atenção para os prejuízos que as manifestações têm gerado para a cidade.
Difícil encontrar quem seja contra o direito de qualquer categoria profissional, militantes políticos ou mesmo moradores de uma comunidade se manifestar. E os próprios dirigentes das entidades citadas acima já se posicionaram em defesa desse direito. O presidente da Associação Comercial da Bahia, Adary Oliveira, por exemplo, definiu, com simplicidade: “Sou a favor de toda liberdade, mas não pode querer impedir as pessoas de levar sua vida normal”.
Muitos filósofos, juristas e outros profissionais que se dedicam a pensar as relações humanas defendem a liberdade dos cidadãos. Só que, não raro, reconhecem eles, o direito de um indivíduo ou de um grupo de indivíduos ameaça o de toda a sociedade. Nesse momento se instala o dilema: liberdade individual ou bem comum? A verdade é que o fato de vivermos numa sociedade democrática, em que cada um tem o direito ao livre-arbítrio de seguir a ideologia que melhor lhe convier, não nos exime de obedecer a antiga, mas atemporal, regra: “O seu direito termina onde o de outro começa”.
A população merece ser ouvida sempre. Contudo, quem abusa desse direito e não respeita o direito dos outros deve ser contido conforme os ditames legais. Para o filósofo alemão Immanuel Kant, uma legislação justa deve harmonizar a liberdade individual e coletiva. No seu entender, que cada um busque sua felicidade sem, no entanto, infringir a dos outros. E que os interesses ou desejos particulares de um determinado indivíduo ou grupo de pessoas não se sobreponham ao de toda a coletividade. Já passou da hora de termos uma discussão séria e sensata sobre que tipo de sociedade queremos viver.