Cadastre-se e receba grátis as principais notícias do Correio.
Da Redação
Publicado em 13 de dezembro de 2018 às 15:30
- Atualizado há 2 anos
A educação não vive de consensos. Há muitas dúvidas relacionadas à melhor didática a ser adotada, quais as melhores abordagens de ensino-aprendizagem, o melhor currículo. Há uma postura plural e diversos debates na defesa e adoção de variadas práticas. Porém, todos que já pisaram numa sala de aula sabem da impossibilidade de se assumir uma postura neutra. Não se pode falar ao docente para deixar sua subjetividade de lado, esquecer seus valores e estabelecer uma relação neutra diante do conhecimento, como se este fosse algo exterior a ele, como se não dependesse do encontro com os estudantes, que compõem coletivos tão diferentes. Sim, cada turma é única. >
O mesmo debate da neutralidade é travado há muito tempo na ciência. A escola filosófica conhecida como positivismo é uma das únicas a acreditar em tal possibilidade. Durante muito tempo, as ciências naturais conseguiram manter o arcabouço positivista e afirmar a primazia do conhecimento neutro, afinal, seu objeto sempre foi percebido como distinto do status subjetivo dos pesquisadores que os estudava. No entanto, foi uma das áreas mais duras da ciência: a física, a primeira a trazer novamente a subjetividade à tona, ao afirmar que o pesquisador influencia diretamente na construção do objeto investigado. Há um interessante fenômeno que costuma ser mencionado: a depender do interesse do pesquisador, o mesmo fenômeno pode se apresentar ora como onda ora como partícula. Com isso e os desdobramentos da teoria da relatividade, as próprias ciências naturais tiveram de admitir que todo conhecimento é produzido. Não existe neutralidade. Sua produção implica em um conjunto de fatores, inclusive os subjetivos. Isso não é nenhum demérito para a ciência. Ela não deixa de ser mais importante por isso. Muito pelo contrário. A referida abordagem serve para mostrar que o conhecimento é mais dinâmico do que se pensava. Sua produção envolve sempre questões sociais, políticas, éticas, ecológicas, interesses de grupos, etc. >
Sendo assim, por que o projeto da Escola Sem Partido parece querer ir de encontro com o modo como o conhecimento é percebido hoje? Para começar a responder essa pergunta, basta ter em mente os discursos mais propagados pelos adeptos de tal projeto. Sempre que a escola é posta em questão, acusam-na de querer impor um único ponto de vista, de ênfase marxista, baseado na esquerda, que trata a questão de gênero e aborda questões relacionadas às minorias sociais. Então, o que está em questão não é a neutralidade do conhecimento. Aliás, não seria muito agressivo dizer que muitos adeptos da Escola Sem Partido nem sequer sabem o significado de epistemologia, não estão nem aí para saber como o conhecimento é constituído. >
O que querem com tal projeto é impor um gigantesco silêncio sobre a escola. Querem que as instituições de ensino deixem de ser lugar de reflexão, de questionamento. Querem que a escola se isente de tratar quaisquer formas de opressão, principalmente as ligadas à pobreza, ao gênero, às sexualidades e às questões raciais. Sobretudo, o que está em jogo é a educação crítica, porque é potencialmente perigosa, pois pode provocar indignação diante das injustiças, pode ajudar os estudantes a escolherem melhor os representantes, a exercerem seu papel ativo de cidadão, fazendo com que problematizarem seu lugar, desejem e tentem construir um mundo melhor. O que está em jogo não é uma educação neutra, pois todos sabem que isso é impossível. O que está em jogo é a assunção a outro tipo de política. Querem impor aos professores uma história única, como se isso fosse possível. Afinal, a educação e a sala de aula sempre foram marcadas pela diversidade. Há docentes de diversas filiações políticas. Nunca houve predominância da esquerda, nem da visão marxista de mundo. O que está em questão é outra coisa bem diferente. >
Querem censurar os professores para que não cuidem dos estudantes mais carentes, mostrando a condição de miséria e desigualdade em que vivem, apontando possibilidades de mudança, afirmando que através da educação podem mudar “o destino social” traçado para eles; mostrando que não precisam se resignar diante dos postos de trabalho mais precarizados, mas, ao invés disso, podem, com muito mais esforço e empenho (como têm demostrado os estudantes cotistas), atingir melhores rendimentos e conquistar funções até então nem sonhadas. O que querem é dizer ao professor para deixar de ser multiplicador de esperança, afinal, não é sensato chegar por aí colocando esperança na cabeça de qualquer um. Um exemplo disso é a aprovação da Base Nacional Comum Curricular – BNCC, que restringe drasticamente a oferta de disciplinas, especialmente as da área das humanidades. >
Querem a imposição de uma educação ainda mais elitista que aprofunde ainda mais o fosso entre a educação privada e a pública (para os nascidos sem esperança). O ideal de tal projeto é que o docente chegue a afirmar para os estudantes que a desigualdade social é um fenômeno natural e o gênero uma ficção, uma falácia! Os adeptos de tal proposta ainda acusam os outros de estarem invertendo a ordem das coisas.>
Se a questão não fosse tão trágica seria até motivo para riso. Mas, como o professor na responsabilidade de sua profissão, chegará para um estudante que está passando fome e dirá: não se preocupe, isso é natural? Como chegará diante de um estudante que sofre constantemente com o bullying, provocado pela ignorância e homofobia diante da sua orientação sexual, e dirá que é só questão de vontade, afinal, trata-se de opção, portanto, terá de mudar o seu estilo de vida, porque está errado? Querem transformar os docentes em pessoas indignas, sem compaixão. Pior que isso, querem impor preconceitos e valores retrógrados como parte da conduta padrão do profissional docente. >
O que está em jogo é a tentativa insidiosa de barrar a entrada de pobres, negros e demais minorias sociais nas universidades, que sempre tiveram de enfrentar o desrespeito e a privação de uma série de direitos. O que precisa ser dito é que a elite perversa e hipócrita deixou cair sua máscara, afinal seu histórico nojo dos pobres não pode mais ser disfarçado quando se teve de dividir o mesmo voo, quando o filho que cursava medicina teve de dividir a mesma sala de aula com o filho da empregada.>
A quem serve o projeto escola sem partido? Ah, sem dúvida, só serve para ajudar a mascarar novamente o medo e o ódio históricos que a burguesia sempre nutriu pelos pobres. Justamente agora que os pobres e negros estavam tendo mais acesso ao ensino superior surge tal projeto, como vimos, não por acaso. Então, como somos um país em que menos de 1% compõe as famílias mais ricas da população, tirando estes, ninguém mais em sã consciência pode ser a favor de tal projeto. A não ser a parcela da classe média que aspira alcançar o tão pretendido estilo de vida dos “eleitos” elite. Os outros são (re)produtores de conteúdo massivo disseminado de modo extremamente veloz através das redes sociais. O verdadeiro nome do projeto deveria se chamar Escola com mordaça. Contra ele, deve-se conclamar por uma educação plural. >
Leonardo Rangel é professor de Sociologia do Instituto Federal da Bahia, Campus Salvador (Ifba), doutor em Educação pela Universidade Federal da Bahia (Ufba) e pós-doutorando em Educação e Cotidiano pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Bolsista da CAPES.>
Conceitos e opiniões expressos nos artigos são de responsabilidade exclusiva dos autores >