O engenheiro que ama Da Vinci: baiano constrói artefatos idealizados há 500 anos

Thales de Azevedo Filho tem uma história de arte, engenharia e criação

Publicado em 19 de maio de 2019 às 06:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Marina Silva/CORREIO
Projeto de escadas e barco bélico desenhados por Da Vinci e criados por Thales por Marina Silva/CORREIO

Um homem da Renascença numa cidade da Idade Média. Com a sua típica divisão em cidade alta e baixa, ladeiras empinadas e ruas irregulares, não é estranho caracterizar parte de Salvador como medieval. Surpreendente é encontrar, no bairro da Graça, um engenheiro que, há duas décadas, admira, investiga e constrói artefatos idealizados há 500 anos por Leonardo da Vinci.

Nascido em Salvador, Thales de Azevedo Filho, 76 anos, é criador do Circo do Saber - e de todo seu acervo. Composto de invenções autorais e de objetos projetados por Da Vinci, o espaço, aberto à visitação, é testemunha da capacidade humana de inventar e decifrar os enigmas da natureza. Leonardo e Thales são os inventores.

As duas trajetórias devem algo ao berço. Se o italiano desenvolveu suas aptidões por ser filho ilegítimo, desobrigado de assumir a profissão do pai, Thales de Azevedo Filho é fruto de um dos grandes intelectuais brasileiros, o médico e antropólogo Thales de Azevedo.

Uma das coisas que inspira o baiano é sua própria família. Thales, que tem três irmãos e quatro irmãs, se orgulha de todos terem apreendido a “habilidade de fazer coisas. Os homens são marceneiros. As mulheres, exímias costureiras e cozinheiras”. Reflexo de outro tempo. E razão de uma das duas frases que decoram o museu: “Quem faz com as mãos, faz melhor”.

A outra frase diz que “quem não conhece os princípios, não vai entender nem os meios, nem os fins”. Os dois dizeres são de Thales, mas a referência é óbvia: Leonardo da Vinci. O italiano, que criou as duas pinturas mais famosas do mundo - Mona Lisa e A Última Ceia -, não tem, como pintor, um catálogo extenso. Na maior parte da vida foi observador, inventor e engenheiro. Ou seja, interessado nos princípios.

Uma das suas famosas reflexões questiona: “por que os peixes dentro d’água são mais ágeis do que os pássaros no céu, quando deveria ser o contrário, já que a água é mais pesada e densa que o ar?”. 

Mas, além dos pensamentos inquietos, parte significativa da sua obra consiste em desenhos, que sempre nasciam em forma de projetos para máquinas. Leonardo, no entanto, não construiu nenhuma das suas ideias. Diferente dele, Thales constrói. Desde cedo, ele exercita seus três atributos: engenheiro, inventor e observador.

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Thales nasceu em 1943 e estudou no Colégio Antônio Vieira, seguindo os passos do pai - na época, mulheres ainda não eram aceitas no instituto jesuíta. Formado na turma de 1969 da Escola Politécnica da Ufba, Thales de Azevedo Filho escolheu seguir a Engenharia Elétrica pelo lado prático do curso. Antes, entre 63 e 65, até tentou cursar física, mas só a teoria não lhe instigava.

Hoje em dia, quando não está enfurnado na oficina onde cria seus modelos, exerce com destaque a profissão escolhida. Uma das últimas premiações aconteceu em 2018, quando seu escritório fez o projeto das instalações do edifício que venceu o Prêmio Talento em Engenharia Estrutural.  

A trajetória de Thales está totalmente ligada à estrutura familiar e sua devoção ao conhecimento. E isso talvez explique uma pequena brecha nos encantos do museu. Ao percorrê-lo, há uma sensação de que todo aquele conteúdo deveria estar integrado na formação de cada estudante - do ensino fundamental, principalmente. E isso é o grande desejo de Thales, que pode começar a se tornar realidade.

Isso porque, em junho, o Palacete das Artes, também na Graça, vai abrigar uma exposição inédita. Um passo que pode ser importante na integração do Circo do Saber ao circuito da educação pública.

Quem visitar as obras do Circo, testemunhará o primeiro modelo de Stand Up Paddle, criado em meados do século XV, além do primeiro paraquedas e helicóptero. E o melhor: a visita é interativa. Afinal, quem aprende com as mãos, afinal, aprende melhor.

Uma das poucas réplicas que não se transformaram em desdobramentos históricos imediatos - Da Vinci nada construiu, mas suas ideias, como a catapulta e a bicicleta, foram logo viabilizadas por outras mentes - é a de um dispositivo de mergulho. Thales lamenta em dizer que Leonardo estava certo ao suspeitar de que os humanos estragariam as águas quando tivessem acesso a elas. Apesar do lamento, Thales arregaça as mangas para tentar mudar esse cenário. O engenheiro tem como bandeira e tema das palestras que ministra a construção sustentável, já que, segundo ele, “a sustentabilidade não é só um marketing, traz resultados financeiros". “Me preocupo em como a construção civil e a engenharia podem contribuir para evitar o que tem acontecido com o planeta. Meus projetos são voltados para a sustentabilidade energética. Não existe isso de ‘botar fora’. O ‘fora’ é aqui. Precisamos cuidar do mundo.”Já quando o assunto se restringe ao Brasil, Thales é firme em eleger uma urgência: educação. Afinal, constituiu uma espécie de fábrica fantástica, propícia ao ensino. Avô de três netos, sorri ao comentar que um dos três filhos teve que arrancar a neta mais nova de um museu da matemática, nos Estados Unidos.

Organizando direito, a cena pode ser replicada com muitas crianças, aqui mesmo, em Salvador. Contudo, o engenheiro é reticente em dar opiniões assertivas sobre a situação atual do país - enxerga com preocupação ou entusiasmo? A resposta combina com o lado material de construir os modelos de Leonardo da Vinci: “É preciso investir em ensino técnico, e retirar um pouco os estudantes dos tablets e celulares. Saber construir algo é essencial, e tem sido negligenciado”.

Quando o assunto se estende à universidade, que recentemente sofreu cortes financeiros, Thales acredita que lá é o ambiente ideal para construir pesquisas e chegar ao conhecimento de ponta.

Porém, o fato de Leonardo da Vinci - um filho fora do casamento, gay, vegetariano e canhoto - ter como condição de prosperidade uma cidade pouco medieval para os padrões da época, que não se incomodava com essas minorias, não foi mencionado. A condição humana comum, de Leonardo, aparece mais como contexto das histórias que o baiano não para de contar sobre o italiano; mas o foco está na manifestação do gênio, da capacidade curiosa e inventiva de Da Vinci.

Capacidade, aliás, que ocupa o tempo de Thales como nenhuma outra atividade. Já são mais de 50 modelos construídos com fidelidade aos cadernos do seu ídolo. Além disso, mecanismos autorais ocupam sótãos, salas conjugadas e quartos de despensa do ateliê, muitas vezes sem a devida manutenção.

A voz, dinâmica e altiva, nessas horas serve para disfarçar uma lâmpada queimada ou uma roldana que trava. “Eu queria ser Bill Gates”, comenta, já que o fundador da Microsoft abriu, recentemente, três museus dedicados a Da Vinci. O sorriso que acompanha o comentário imagina o que poderia ser feito se houvesse, na capital baiana, a infraestrutura dos Estados Unidos.

Todavia, Thales esquece a preferência de Bill Gates pelo analógico - o que se aprende ao vivo e depende de esforço. Sendo assim, dá para imaginarmos Bill Gates - que também está convidado para a exposição no Palacete -, por um momento, querendo ser Thales de Azevedo Filho.