O passado em quadrinhos

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  • Paulo Sales

Publicado em 16 de agosto de 2021 às 05:00

- Atualizado há um ano

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Escrevo embebido em memórias muito antigas, retiradas de alguma velha gaveta da inconsciência. Li há pouco uma postagem no Facebook do jornalista Gonçalo Junior, com quem compartilho uma amizade virtual. Gonçalo fala de uma revista Mickey lançada em agosto de 1979, que continha, na seção Correio dos Leitores, uma carta escrita por ele. Décadas depois, voltou a tê-la em mãos, o que desencadeou uma sucessão de reminiscências. Nele e em mim.

Também fui um leitor assíduo e apaixonado das histórias de Walt Disney. Tio Patinhas, Donald e os três sobrinhos eram meus personagens preferidos. Suas aventuras por lugares remotos e inóspitos do mundo me transportavam para imensidões azuis, vermelhas, negras, profundas, siderais. Um mundo do qual eu apenas suspeitava, mas que já demonstrava desejo de desbravar.

Um dos momentos mais preciosos da minha infância de garoto ensimesmado era ir à banca de revistas do bairro onde morava – o Lanat, no Barbalho. Lá, comprava as edições mais recentes de Tio Patinhas, Mickey, Almanaque Disney e, apenas de vez em quando, Disney Especial (edição luxuosa e espessa, que custava uma pequena fortuna). Vez ou outra, uma da Turma da Mônica.

Essa banca me abria um universo – ou vários. Costumava ir acompanhado do meu pai ou do meu irmão mais velho, e passava um bom tempo olhando as capas das edições recém-chegadas. Lembro de ter declarado uma vez, lá nessa aurora dos meus sete ou oito anos, que gostaria de ganhar como presente de aniversário uma banca de revistas. Não uma qualquer, mas aquela, na entrada da rua, cujo dono era um simpático homem negro de bigode, que já me conhecia.

A banca está lá até hoje – ou pelo menos estava na última vez que voltei ao Lanat, que conserva praticamente as mesmas características de 40 anos atrás, apenas ligeiramente mais decadente: os prédios baixos, as ruas de paralelepípedos, as casas amplas (hoje muradas e inacessíveis). Era uma vida prosaica, tranquila, como uma vida de interior. Dessa última vez, passei pela casa onde moramos e não a reconheci. O portão baixo, de ferro, fora substituído por uma muralha enorme, sobre a qual despontava uma cerca elétrica.

Gostaria de conferir como a casa está agora, embora saiba que essa experiência poderia ser traumática. Melhor encerrar os lugares onde passamos momentos felizes lá nos desvãos da alma, impenetráveis ao olhar do presente. Como as coisas que moram no fundo do mar e se desintegram ao voltar à superfície. Não sei como reagiria, por exemplo, ao reler uma historinha da qual recordo apenas o nome: O sortilégio dos taipirídeos, de uma Mickey bem antiga. Creio que iria às lágrimas.

Essas revistas foram uma espécie de iniciação ao prazer da leitura, que me acompanharia pelas décadas seguintes como um hábito obsessivo. Bem-escritas e imaginativas, as histórias de Walt Disney deixaram tatuada em mim uma forma muito peculiar de observar o mundo, impregnada de uma abstração que ainda hoje me acompanha.

A permanência delas no meu imaginário talvez se dê porque, de alguma forma, elas serviram de alicerce para o delírio silencioso que mais tarde, já adolescente, eu encontraria nos livros de García Márquez. E, mais tarde ainda, para que eu me embrenhasse na fantasia profunda, elaborada e intelectualizada de Borges. Como se subisse uma escada e fosse acumulando sons, imagens, dúvidas e indagações a cada degrau. Não deixa de ser uma metáfora interessante para a vida.

***

Ainda no terreno das lembranças: a morte de Paulo José mexeu comigo. Mas a de Tarcísio Meira invadiu um território muito mais íntimo e profundo: o da memória afetiva. Tarcísio está em nossas vidas desde quando elas eram só esboços do que somos. Seu porte de galã, sua voz de tenor, seu sorriso capaz de cativar pessoas de ambos os sexos e de todas as idades, tudo isso foi embora com ele, junto com personagens que estão impressos na página de nossas vidas.

Era um ator maior que a tevê, o cinema e o teatro, não por ser fora de série, mas por ser onipresente. Como um deus. Meu pai se parecia muito com ele quando ambos eram mais novos. Essa semelhança fincou raízes no meu afeto por Tarcísio. E me fez ficar triste, um pouco como se perdesse meu pai de novo.