O perigo do 'pendrive': entenda os riscos do vape, nova modinha entre adolescentes

Cigarro eletrônico é proibido no Brasil, mas pode ser encontrado facilmente. Escolas da Bahia tomam medidas para evitar uso

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  • Thais Borges

Publicado em 24 de julho de 2022 às 05:51

- Atualizado há um ano

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Dos três banheiros da escola, apenas um fica aberto antes do início das aulas, às 7h20. Quando todas as aulas terminam, às 12h40, os sanitários dos dois andares acima do térreo voltam a ser fechados. Essa medida se tornou uma rotina há cerca de dois meses, em um colégio particular de Feira de Santana. Era ali, nos banheiros, que alunos - em especial, do Ensino Médio -, se reuniam para usar vape, o cigarro eletrônico. 

A febre começou a aumentar entre o fim de abril e o começo de maio, quando escola de Helena*, 16 anos, teve que tomar uma posição mais drástica. “Normalmente, eles iam em grupos. Tem bastante gente que usa. Mas minhas amigas são contra. Nenhuma apoia”, diz a adolescente do 2º ano do Ensino Médio, que também afirma não usar. “É um vício que acredito que muitas pessoas usam para entrar na modinha. Acham que é estiloso”. 

Mas está longe de ser apenas nas escolas. Não é preciso fazer muito esforço para notar jovens usando o cigarro ‘tecnológico’ em festas, shows, baladas, shoppings e até em casa. Foi numa roda de amigos que o adolescente Luís*, 15, aluno de outro colégio particular da mesma cidade, teve o primeiro contato com o vape.“Meus familiares não sabem que uso, assim como a maioria dos meus amigos e os familiares deles. Acaba que você só sabe quem fuma quando está com essas pessoas em festas", admite. Já em Salvador, a adolescente Renata*, 15, costuma usar na casa onde mora com a mãe. A família nem imagina. Ao contrário do cigarro tradicional, que deixa um aroma forte e distinto, a fumaça que sai dos vaporizadores dificilmente produzirá algum efeito assim. “É porque o cheiro é de bala queimada”, justifica. 

Outros nomes Não é novidade que o cigarro eletrônico ganhou novos sinônimos: além de vape, pode se chamar ‘pod’ ou ‘mod’, dependendo do tipo do sistema. O formato lembra tanto um gadget que virou até meme: com frequência, o uso do vape é chamado de ‘fumar pendrive’. Eles podem ser recarregados até no computador. O que tem chamado atenção, porém, é como ele se tornou popular entre adolescentes e jovens, especialmente após o período mais agudo da pandemia da covid-19. 

Uma das pesquisas mais recentes sobre o uso do cigarro eletrônico entre adolescentes revelou que 16,8% dos brasileiros com idades entre 13 e 17 anos já usaram o utensílio ao menos uma vez. Conduzido por cientistas da Escola de Enfermagem da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), o estudo analisou dados da Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar, promovida pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em parceria com o Ministério da Saúde. 

A média dos adolescentes baianos é um pouco menor do que a média nacional - 9,6% das pessoas nessa faixa etária disseram já ter usado o vape."Nos causou muita estranheza um produto não registrado, proibido, com essa frequência tão alta de experimentação", diz a pediatra e professora Deborah Malta, professora da UFMG e coordenadora do estudo. "A pesquisa expressa a realidade dos adolescentes, porque está sendo vendido na internet e, às vezes, até em estabelecimentos. Mostra que a proibição está sendo muito falha. Tem sites estimulando e falando muitas inverdades, porque o cigarro eletrônico vem com muitas fake news", acrescenta. 

Mas, apesar de ser ilegal no Brasil desde 2009, é tão fácil de ser encontrado na internet ou em lojas físicas que muita gente sequer sabe da proibição ou mesmo que os produtos que são comercializados aqui são provavelmente fruto de contrabando. No início deste mês, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) reforçou a condição atual: além de manter a proibição, o órgão defende a adoção de medidas de fiscalização em parceria com outros órgãos, bem como campanhas educativas. 

Iniciação Um cigarro eletrônico é basicamente um dispositivo onde o usuário coloca um líquido que inclui a nicotina e, em alguns casos, aromatizantes. No passado, foram inicialmente pensados para idosos que não conseguiam deixar de fumar o cigarro tradicional, mas acabou fazendo sucesso mesmo com os jovens - e muito por conta da aparência. 

Tem vape de todos os tipos: coloridos, fluorescentes, com estampas. Alguns vêm até com luzinhas de LED, outros são estilizados com desenhos. Os preços também variam, indo de algo em torno dos R$ 40, nos descartáveis, aos que passam dos R$ 300. 

Em comum, todos têm a mesma aparência de 'gadget', como destaca o pneumologista Paulo Corrêa, coordenador da Comissão de Tabagismo da Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia (SBPT)."O jovem não relaciona (o cigarro eletrônico) com o cigarro convencional, que fede e não é da geração deles. Muitos influencers apresentaram para essa geração um dispositivo que seria um complemento à tecnologia que eles já estão acostumados". Em pouco tempo, a indústria do tabaco se reinventou através dos cigarros eletrônicos. Quando começou a dar certo, as grandes multinacionais compraram as menores e, hoje, utilizam estratégias de marketing e publicidade focadas nesses públicos. 

O resultado, segundo o médico, é que a iniciação ao tabagismo se dá justamente por meio dos vapes. "Na adolescência, os jovens estão testando o mundo. E tem algumas características de impulsividade, obtenção de prazer, incapacidade de estimar risco adequadamente", explica. Muitos costumam dizer que não são viciados e que conseguem parar de fumar assim que tentarem. Mas, na prática, as altas doses de nicotina logo provocam dependência. 

Fake news Só que muitas falácias que circularam por muito tempo sobre o cigarro eletrônico, ao longo dos últimos anos. É possível que você já tenha lido ou ouvido, por exemplo, que os vapes são menos agressivos. Os dispositivos conteriam apenas vapor de água e, portanto, a fumaça não faria mal algum a quem os usa.

Nada disso é verdade, de acordo com entidades médicas. Para começar, a exposição à nicotina nessa idade pode ser prejudicial até para o desenvolvimento intelectual da pessoa. É no começo da adolescência que ocorre o fenômeno da 'poda', que é um rearranjo das sinapses cerebrais. É como se existisse uma redundância das sinapses e, para que o cérebro ganhe mais eficiência, o organismo se redesenha. 

"Se a criança ou o adolescente estiver usando alguma droga psicoativa, ela desenvolverá sinapses de dependência química", alerta Corrêa. Desde o final da década de 1990, cientistas identificaram que um adolescente que começa a fumar com 13 anos tem duas vezes mais dificuldade em parar do que quem começa com 17 anos ou mais. 

O resultado seria de pessoas cada vez mais jovens viciadas em nicotina. Isso leva diretamente a outra mentira que já foi amplamente difundida - a de que cigarros eletrônicos não provocam o tabagismo. No entanto, como reforça o pneumologista pediátrico João Paulo Lotufo, coordenador do projeto antitabagismo do Hospital Universitário da Universidade de São Paulo (USP), o cigarro eletrônico é, como o próprio nome diz, um cigarro. Assim como seu homônimo tradicional, também provoca a dependência de nicotina. 

Segundo ele, estudos têm provocado que essa dependência vem de forma muito acelerada, inclusive reforçando aspectos mais dramáticos do vício."Roubo de coisas em casa só se via com uso de drogas pesadas, mas se viu também com o cigarro eletrônico. Os milhares de jovens dependentes de nicotina não se beneficiaram com o tratamento habitual da dependência de nicotina", aponta.A adolescente Renata* experimentou o vape pela primeira vez aos 12 anos. Três anos depois, na festa de aniversário de 15 anos de uma colega, voltou a usar. Hoje, ela diz que quase todos os seus amigos fumam cigarro eletrônico. Mas ela teve contato com a nicotina antes. “Fumei cigarro desde os 11 anos. Parei por agora”, diz, admitindo ter substituído o tradicional pelo vaporizador. 

A frequência depende da disponibilidade. “Se o vape está na minha mão, uso todo dia. Se não está, não uso quase nunca. Mas vou tentar, aos poucos, parar”. Renata diz saber os riscos à saúde; viu o alerta em reportagens na televisão e, além disso, ela própria já sentiu o efeito. “Eu já quase desmaiei uma vez. Tive que ficar deitada no banco da escola, com vontade de vomitar”, lembra. 

Doenças A composição do cigarro eletrônico também não é tão simples quanto se fazia acreditar. Um recipiente de líquido usado no vaporizador tem a quantidade de nicotina equivalente a três maços de cigarro convencional. "São doses cavalares de nicotina", alerta o pneumologista Paulo Corrêa, da SBPT. 

Além disso, o líquido contém outras substâncias, que podem incluir de metais pesados a formaldeído (formol). Muitas são cancerígenas, enquanto outras estão associadas a outras doenças crônicas."Pacientes que usam o vape têm mais sintomas respiratórios, como tosse, risco de bronquite, asma e falta de ar", alerta o pneumologista Frederico Fernandes, diretor da Sociedade Paulista de Pneumologia e Tisiologia (SPPT). Existe até uma doença específica relacionada ao uso do cigarro eletrônico: ela é chamada de evali (lesão pulmonar associada ao uso do vape, na sigla em inglês). Essa lesão aguda leva rapidamente à insuficiência respiratória, provocando hospitalização. Em outros países, há casos documentados de necessidade de transplante e de morte. 

A questão é que, em pouco tempo, as consequências já aparecem. Muitos jovens têm intolerância à atividade física, por exemplo. O adolescente Luís* diz ainda não ter percebido nenhum problema de saúde desde que começou a usar o vape, mas admite que vê acontecer com colegas. “Amigos meus que usam com mais frequência não conseguem sequer jogar 15 minutos de futebol que já começam a ficar ofegantes e param”, conta. 

Ele calcula ter diminuído o uso do cigarro em até 80% e até aconselha que pessoas que não fumam não comecem a fazer o mesmo. Luís acredita que muita gente só entende o quão é prejudicial ao ver um amigo “quase implorando” para fumar ou passando mal, com dores no peito, ao tentar correr. 

“Ressalto que é um conselho, pois sei bem como é ter enxeridos praticamente te reduzindo por causa disso. Você não é pior do que ninguém por causa de um cigarro. Eu não mudei por causa do cigarro e meus amigos comprovam isso”, pondera. 

Viés  Ainda há quem diga por aí que a fumaça do vape não é prejudicial aos fumantes passivos. Mas não é bem assim. Alguns estudos preliminares já indicam que crianças expostas ao cigarro eletrônico, por exemplo, têm mais sintomas respiratórios, segundo o pneumologista Frederico Fernandes. "A fumaça é nociva, sim. Já temos sinalizações de que, de fato, o malefício existe", pontua. 

Como tudo ainda é recente, muitos estudos que comprovam essas e outras consequências têm sido concluídos nos últimos meses ou anos. Antes disso, a indústria do tabaco vinha patrocinando seus próprios estudos, que são considerados comprometidos por terem conflito de interesse na avaliação de muitos médicos e cientistas. 

“A gente chama essa estratégia de ‘research front groups”, explica o pneumologista Paulo Corrêa. Front group, no inglês, seria algo como uma ‘organização de fachada’. Cientistas podem ser contratados por grupos que têm interesse em uma determinada motivação ou pauta particular. “Como a indústria do tabaco não tem credibilidade, ela patrocina pesquisadores para usar a credibilidade deles”, completa. 

A tática é antiga, como aponta o pneumologista Fred Fernandes,da SPPT. Nas décadas de 1970 e 1980, estratégias parecidas foram adotadas com os chamados 'cigarros light', que, teoricamente, seriam menos agressivos. "Tudo mentira. Nada era fundamentado em estudos. A mesma coisa também nas décadas de 50 e 60, quando colocavam médicos para dizer que tal marca era mais saudável ou que irritava menos a garganta", lembra. 

Fiscalização  O controle do vape é tão frouxo no Brasil que os cigarros eletrônicos conseguiram voltar a  penetrar até mesmo ambientes fechados, proibidos no país pela Lei Nacional Antifumo. De acordo com a legislação, é preciso instalar áreas exclusivas para fumantes em locais de uso coletivo, sejam públicos ou privados. Esses lugares devem ter condições de isolamento, ventilação e exaustão do ar. 

Isso deu certo com o cigarro convencional porque havia punição exemplar para os estabelecimentos que não cumprissem, como ressalta o pneumologista pediátrico João Paulo Lotufo, da USP, que defende uma fiscalização mais efetiva. “Importante saber que o FDA (agência reguladora dos Estados Unidos) liberou lá atrás o cigarro eletrônico com a intenção de ver se haveria problemas ou não. Hoje, já se conhecem os problemas e a Anvisa manteve a proibição”, reforça.

Para a professora Deborah Malta, da UFMG, há um retrocesso geral na política regulatória brasileira."Teríamos que subir o preço dos cigarros, aumentar, taxar. Tem mais de quatro anos que não tem aumento de preço e chegaram até a pensar na possibilidade de reduzir. Isso mostra que regular não é o forte, que mais vale o apelo da indústria à saúde da população", critica. O foco, segundo ela, deve incluir desde o combate às fake news do cigarro eletrônico, por parte do governo, até a fiscalização de fronteiras. "Ou esses cigarros estão sendo produzidos no Brasil ou estão vindo de algum lugar. Eles vêm de onde? Tem que fiscalizar fronteiras marítimas e terrestres, inclusive as bagagens de pessoas que vêm de fora e trazem vape. Tem que ter controle de contrabando e quem vende tem que ser punido", enfatiza. 

Através da assessoria, a Polícia Federal informou que, atualmente, não há nenhuma ação de combate e fiscalização contra a venda de vaporizadores na Bahia. 

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Com primeiro semestre ‘complicado’, escolas promovem ações de conscientização A preocupação com o cigarro eletrônico não tinha como não chegar às escolas e aos professores. Segundo o diretor do Sindicato dos Estabelecimentos de Ensino do Estado (Sinepe) Wilson Abdon, que representa os colégios particulares, muitas instituições têm feito trabalho de conscientização. "As escolas já faziam isso com o uso de drogas, mas têm incluído o vape. Temos fiscalizado com câmeras e tentado abrir os olhos dos adolescentes. O nosso trabalho é de educação. Tem que tentar coibir quando possível, mas é muito de orientação", explica. Como nem sempre é possível detectar o cigarro eletrônico pelo cheiro, ele acredita que muitos pais não estão conseguindo ter essa vigilância. Na avaliação dele, o cenário também é reflexo de dois anos de isolamento social devido ao período mais agudo da pandemia da covid-19. Por isso, o primeiro semestre deste ano foi considerado mais 'complicado'. 

"Adolescentes estão querendo viver intensamente a vida que não viveram nos últimos dois anos. Há também uma falta de maturidade pelos dois anos sem muito convívio social. Mas, agora, no segundo semestre, as coisas estão começando de forma mais calma. O número de casos têm diminuído porque as orientações com as famílias e os alunos estão fazendo efeito", diz. 

Diretor do Colégio Perfil, ele conta que chegou a se deparar com alguns casos. Esses alunos tiveram acompanhamento em parceria com as famílias. "Hoje, não temos mais nenhum relato, mas a gente continua no monitoramento com as famílias", conta. 

Na Escola Sesi Djalma Pessoa, em Piatã, apesar de não ter identificado nenhuma ocorrência no ambiente escolar, a diretora Nairene Souza enviou um comunicado aos pais alertando para o problema."Foi pelo relato pós-pandêmico, famílias vinham com a preocupação de que o cigarro eletrônico exercia um certo fascínio sobre eles pelo gosto, por estar na moda. Então, a escola trabalhou na prevenção com o comunicado e nas aulas com os professores de Biologia". Sob anonimato, uma professora de uma instituição privada que também é mãe de alunos contou que já presenciou estudantes fumando na frente da escola onde trabalha em Salvador. "A escola está cheia desse vape", diz ela, que trabalha com idades menores. "Isso já é uma prática comum lá dentro, principalmente com os alunos do Ensino Médio. Estou acompanhando como mãe", explica. 

O relato é parecido com o de outra mãe que também atua como psicopedagoga em outra instituição. "Eles já estão viciados ao ponto de não fumarem na festa. Levam para a escola e vão para o banheiro, estando no Ensino Médio. No cursinho, saem da aula para fumar", diz. 

*Nomes fictícios.