O poeta e o tirano

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  • Paulo Sales

Publicado em 28 de junho de 2021 às 05:00

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Em O Meu Último Suspiro, seu livro de memórias, o cineasta espanhol Luis Buñuel recorda o assassinato de um grande amigo, o poeta e dramaturgo Federico García Lorca, logo no início da Guerra Civil Espanhola. Conheceram-se na juventude, quando eram estudantes universitários e faziam parte de um grupo que abrigava, entre outros nomes célebres, o pintor catalão Salvador Dalí. Viviam as dores e delícias de uma Madri boêmia e ainda provinciana.

Buñuel escreve: “De todos os seres vivos que encontrei, Federico é o primeiro. Não falo nem do seu teatro nem da sua poesia, falo dele. A obra-prima era ele, parece-me mesmo difícil imaginar alguém parecido. Pusesse-se ao piano para imitar Chopin, improvisasse ele uma mímica, uma curta cena de teatro, era sempre irresistível. Podia ler fosse o que fosse, porque a beleza brotava sempre dos seus lábios. Tinha a paixão, a alegria, a juventude. Era como uma chama.”

Sabe-se que oficiais sob ordens de Franco executaram Lorca em Granada, no dia 18 de agosto de 1936, numa área conhecida como Fuente Grande. Segundo Buñuel, Lorca não se interessava por política, e queria apenas voltar à terra natal. Tinha 38 anos e sequer logrou cumprir o desejo, expresso no poema Romance Sonâmbulo, de morrer decentemente em sua cama. “Nem meu lar é mais meu lar”, lamenta em outro verso do mesmo belo poema. A guerra, sempre a guerra.

Volto às memórias de Buñuel: “Federico tinha um enorme medo do sofrimento e da morte. Posso imaginar o que ele sentiu, em plena noite, dentro do caminhão que o transportava para o olival, onde viria a ser abatido. Penso muitas vezes nesse momento”. Outro trecho: “Na realidade, Federico morreu porque era poeta. Nessa época, do outro lado, ouvia-se gritar: ‘morte à inteligência!’”.

Tudo isso passou. O corpo de Lorca nunca foi encontrado, Franco repousa no inferno e Buñuel também não pesa mais sobre a Terra. Os três, porém, permanecem no imaginário do mundo, cada um a seu modo. Não se devem esquecer os versos do poeta andaluz ou a sua existência breve e luminosa, nem os filmes desconcertantes do cineasta. Assim como não se deve esquecer quem foi Francisco Franco, que elevou a níveis estratosféricos o conceito de tirano. Afinal, o mal sempre teima em ressuscitar. 

Mesmo para os padrões europeus do século 20, o conflito fratricida que devastou a Espanha foi particularmente cruel. E a ele se seguiu uma ditadura feroz e longeva, cuja derrocada só se deu em 1975, com a morte do carrasco. O território sombrio que Franco edificou cedeu lugar então a um país cosmopolita, próspero e vibrante. E sua capital não era mais uma cidade inóspita e opressiva, e sim o berço da movida madrileña. 

Pedro Almodóvar traduziu à perfeição essa atmosfera efervescente no lindo final de Carne Trêmula, quando o personagem Victor Plaza fala ao filho que vai nascer: “Você não sabe como tudo isso mudou. Veja como está a calçada, cheia de gente. Quando eu nasci não havia uma alma na rua. As pessoas estavam encerradas em suas casas, cagando de medo. Para sua sorte, filho meu, já faz muito tempo que na Espanha perdemos o medo.”