O retrovírus acordou: concentração de genes adormecidos pode explicar mortes precoces por covid

Cientistas coordenados pela Fiocruz descobriram reativação de vírus ancestral, presente na linhagem humana há 25 milhões de anos, em pacientes graves; agora, tentam entender como ele 'desperta'

Publicado em 30 de maio de 2021 às 06:30

- Atualizado há um ano

. Crédito: Arte: Morgana Miranda/Casa Grida

O último dos retrovírus a infectar o genoma humano – há 25 milhões de anos, ou mais – despertou de um sono profundo. Naquele período, enquanto os primatas se dissociavam dos humanos na escala evolutiva, um retrovírus, hoje conhecido como HERV-K, acabou entrando nos nossos gametas e infectando uma geração após a outra. Dali, os chimpanzés seguiram sem ele, mas os ancestrais do homem enfrentaram uma batalha na seleção natural: sobreviveu quem conseguiu, de alguma forma, silenciar o HERV-K. Na semana passada, no entanto, cientistas coordenados pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) fizeram uma descoberta inédita: eles perceberam uma concentração muito grande desse retrovírus ancestral em 25 pacientes graves com covid-19. O HERV-K, afinal, adormecido há milhões de anos, tinha sido acordado.

Mas, calma. Além do SARS-CoV-2, há outro vírus circulando por aí? Na verdade, não. Não há outro vírus no ar e não dá para ‘pegar’ HERV-K. Simplesmente porque ele já está no nosso corpo e é apenas um, de muitos retrovírus, que infectaram o genoma humano ao longo da evolução da espécie.“Eles já fazem parte dos nossos genes e, sem eles, nós não seríamos quem somos”, antecipa o biomédico e doutor em Biologia Celular e Molecular Jairo Temerozo, pesquisador do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz) e primeiro autor do estudo que encontrou esses retrovírus em pacientes graves de covid.O pesquisador aponta que os retrovírus respondem por algo entre 5% e 8% dos nossos genes e alguns têm funções no corpo – inclusive positivas, como a geração das proteínas que formam a placenta e permitem a gravidez. Mas, outros, como o HERV-K, seguiram adormecidos, sem uma função no organismo. O problema é que, em geral, o que vem em excesso faz mal. E é justamente esse excesso de HERV-K encontrado pelos pesquisadores que pode explicar por que alguns pacientes de covid-19 desenvolvem quadros graves e têm mortes precoces, enquanto outros sobrevivem à doença.

Os cientistas, que publicaram um pré-print – versão preliminar, ainda sem revisão de outros pesquisadores – na semana passada, seguem aprofundando os estudos para tentar descobrir, afinal, como e por que o SARS-CoV-2 despertou um retrovírus ancestral. E se é que ele despertou mesmo, como um gatilho, ou se esse é um efeito colateral secundário da infecção causada pelo coronavírus.

O que se pode dizer, por enquanto, é que em 25 pacientes graves, em ventilação mecânica e internados no Instituto D’Or e no Instituto Estadual do Cérebro Paulo Niemayer, ambos no Rio de Janeiro, havia muito mais HERV-K no trato respiratório e no plasma do que pacientes menos críticos e até pessoas que não contraíram a covid-19. E que, após infectar monócitos – células do sistema imunológico humano – em laboratório com o SARS-CoV-2, os cientistas também perceberam um aumento nos níveis do retrovírus, o que ajudou a confirmar as suspeitas sobre a reativação dele.

Piora no quadro Nos pacientes investigados, que tinham alta concentração do retrovírus ancestral, houve aumento da inflamação, problemas com a coagulação e trombose – em geral, a causa final da morte.“A gente ainda não consegue dizer como o SARS-CoV-2 ativa esse retrovírus, precisamos de mais estudos, mas a gente tem pistas de porque isso está acontecendo. Uma delas é que a infecção pelo coronavírus gera um efeito inflamatório muito grande nos pacientes. E, na história natural de infecções virais ou até mesmo do câncer, um evento inflamatório muito forte pode desequilibrar o organismo e pode trazer esses retrovírus de volta”, explica Temerozo.Segundo ele, há muitos retrovírus endógenos humanos, os chamados HERVs, no nosso organismo, alguns com funções até mesmo de defesa. Mas, quando se associam a uma doença, eles tendem a provocar uma piora no quadro do paciente, como parece ter ocorrido com essas vítimas da covid-19. “Para cada doença pode existir um efeito diferente, mas o efeito geral leva a alguma piora, porque vai ser um outro fator inflamatório envolvido no processo”, diz.

O fato de os chimpanzés, inclusive, não terem esse retrovírus ancestral em seu genoma pode até explicar a diferença de gravidade das infecções pelo coronavírus entre humanos e primatas. O pré-print, disponibilizado na plataforma online Research Square, lembra que os primatas não humanos são menos propensos a morrer de covid-19 do que os homens.

Outras doenças A covid-19 não é a primeira doença a ‘despertar’ do retrovírus ancestral. Já há pesquisas que mostram alta concentração do mesmo retrovírus em tecidos de pacientes com câncer de próstata, de pulmão e também naqueles que sofrem de esclerose múltipla e até artrite. Nos casos de câncer e esclerose múltipla, a alta concentração de HERV-K foi associada a uma desregulação do sistema imunológico.“O nosso estudo traz mais elementos para a gente entender a patogênese da covid grave e ele traz também um alerta para possíveis sequelas de um longo prazo associados ao aumento do retrovírus endógeno em indivíduos que sobreviveram à covid grave”, acrescenta o pesquisador Thiago Moreno, do Centro de Desenvolvimento Tecnológico em Saúde (CDTS/Fiocruz), que coordenou o estudo.Essas possíveis sequelas levam a outra pergunta: por que a concentração de HERV-K aumentou em uns pacientes, e não em outros? Os estudos coordenados pela Fiocruz, iniciados em junho do ano passado, continuam em andamento e buscam responder também a essa pergunta. É possível que essa ativação esteja relacionada com uma genética individual. Mesmo que o HERV-K tenha ficado adormecido, sem uma função no nosso corpo, ele sobreviveu. Os mecanismos de controle – e silenciamento – desse retrovírus podem ser mais robustos em alguns pessoas, mais frágeis em outras.

“É preciso considerar a idade, como estava o organismo da pessoa antes da doença. Se ela tem uma comorbidade, quando vem a covid ou outra doença, fica mais fácil [perder o controle]. Não posso dizer que tem um fator especifico [que explique em quem o vírus desperta ou não], mas o conhecimento inicial que se sabe sobre isso é que a genética individual é importante”, explica Jairo Temerozo.

Boa notícia Nem tudo na descoberta, no entanto, traz notícias preocupantes. O achado dos pesquisadores – um grupo de 19 cientistas – pode ajudar a encontrar um tratamento para os pacientes mais graves. Isso porque ainda não existe um fator específico que diga que uma pessoa tenha mais risco de agravar ou não. Se os estudiosos conseguirem confirmar que o coronavírus é mesmo um gatilho para o despertar do HERV-K, será possível adotar estratégias de tratamento.

“No contexto da pandemia, nós temos centenas de pessoas infectadas. Se você puder dizer onde tem uma tendência de piora, isso ajuda no tratamento e nos cuidados paliativos. Nós podemos, então, combater os efeitos colaterais. Se o HERV-K está aumentando a inflamação, a trombose, você pode utilizar anticoagulantes, anti-inflamatórios. Você vai saber diferenciar os grupos com mais riscos”, afirma Jairo Temerozo.