O sentido da vida

Linha Fina Lorem ipsum dolor sit amet consectetur adipisicing elit. Dolorum ipsa voluptatum enim voluptatem dignissimos.

  • Foto do(a) author(a) Gabriel Galo
  • Gabriel Galo

Publicado em 7 de outubro de 2019 às 05:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: .

Naquele dia o pequeno torcedor finalmente teria seu pedido atendido. Acostumado com a resenha à distância, dizia-se torcedor mais por ir com os outros que por identificação. Iriam, pois, ao estádio, este gigante onde o cimento se cobre de alma.

Disso sabia o pai, que na semana comprou a camisa do tamanho certo para que o pequeno envergasse o manto com orgulho. Preparou a expectativa para fazer do dia algo épico. Seria o carimbo definitivo da filiação tão importante na gestão parental: perpetuar a paixão pelo clube.

Contou o grande ao projeto de fanático de quando seu avô fizera o mesmo, coisa de 30 anos antes. Falou dos gostos, dos cheiros, dos toques, das músicas. Do baile em campo, do foguetório, das luzes, dos shortículos da época. Da epopeia do craque, do gol aos 48 assegurando a vitória improvável, do título que veio.

No trajeto, explicava tintim por tintim onde era o quê. “Aqui tinha uma barraca de cachorro-quente, o melhor de minha vida”, “aqui seu avô parava pra fumar um cigarro toda vez”, “aqui, do alto, uma vez, vimos a torcida chegando lá do outro lado. Cantando alto, chegando-chegando, sabe? Seu avô, parou, colocou a mão no meu peito, ‘olha, meu filho, lá vem o Brasil descendo a ladeira”.

No trajeto, cruzaram com tantos Brasis quantos somos capazes de produzir. Todos munidos de suas obrigações e pautados pelas agruras de vidas privadas que devem ser apartadas das obrigações do convívio social. A pressão da torcida, a contusão por vir, o contrato por assinar, o prazo que estoura, a traição, a doença e mais o que fosse amontoando preocupações, permeando o juízo mesmo fora de sua alçada. Talvez a vida adulta seja tão somente lutar para que as preocupações não dominem o que não lhes cabem.

Cuidadoso, sabe bem o pai que basta um curto-circuito que engatilha o efeito dominó para pôr tudo a perder. Um olhar percebido como atravessado e pronto!, a barbárie toma conta. Ou, pior!, um adversário impondo-lhe a derrota e virando a casaca da afeição infantil. Havia, pois, algo maior em jogo ali. A renovação geracional de um contrato indissociável.

Chegaram, por fim, ao quarteirão de concreto que se ergue entre as vias e sobre as casas. O garoto admirou-se.

Ao redor, os Brasis já no pé da ladeira, em expectativa. Ganhava o jovem sorrisos de aprovação. Mexiam no seu cabelo em afago. Era a estrela protagonista de um pacto que todos conheciam, pelos quais todos passaram. Respeitavam a solenidade da ocasião. “Primeira vez hoje? Vai dar sorte!”. 

Mas não conseguia falar, apenas sorria encabulado. Se aceitava os agrados de bom grado, virava-se ao pai pedindo seu aceno de “é tudo isso mesmo. E muito mais.” Estava, pois, abduzido por tudo que se afirma magia.

No aproximado da hora, passaram pelas catracas e, dali a mais um pouco, a grama do tapete era mais verde que a da TV. Em muito breve, os heróis de manto repetidor dos escudos espalhados pelos cantos da cidade se ergueriam pela boca cuspidora de craques. No embalo do canto da torcida e no tremido da arquibancada, levantou-se independente e soltou o definitivo grito que marcava o início da sua jornada boleira: o brado chavão da nação da qual era membro irrevogável.

Gabriel Galo é escritor