O som do silêncio

Linha Fina Lorem ipsum dolor sit amet consectetur adipisicing elit. Dolorum ipsa voluptatum enim voluptatem dignissimos.

  • Foto do(a) author(a) Paulo Sales
  • Paulo Sales

Publicado em 7 de junho de 2021 às 05:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: .

Observo as formigas. Seguem uma trilha pelo chão, trocam informações com as outras que caminham em sentido contrário. Duas delas se detêm mais demoradamente, como comadres fofoqueiras. O que confabulam? Que segredos compartilham? Alguém já disse, acho que foi Mario Quintana, que para os peixinhos do aquário quem troca a água é Deus. Quem sou eu para essas formigas? Um deus onipotente? Ou uma montanha que se move, enorme e aterradora como um leviatã?

Observo Pudim, meu pequeno cão. Enquanto o carrego para que veja a rua, acompanho sua cabecinha dourada se mexendo com o movimento dos carros, o barulho das motos, o caminhar das pessoas lá embaixo. Ao ver outro cachorro passeando com o dono, ele emite um som gutural e se exalta aos poucos. Por fim, late.

Que recado ele quer passar ao outro membro da sua espécie, que se refestela na grama da pracinha aqui em frente? Um pedido de socorro, uma declaração de amor? O que ele sente ao se ver aprisionado nos meus braços? Quem sou eu para Pudim? Um deus benevolente? Ou um tirano que impede a sua felicidade nas ruas, sem coleiras nem horário para voltar para casa?

Observo as pessoas. Duas mulheres que esperam no ponto de ônibus, namorados encostados num carro, um rapaz numa bicicleta com uma mochila de aplicativo de entrega de comida. No que acreditam? Esperam no porvir uma redenção, um juízo final que as absolva dos seus pecados ou endosse sua existência virtuosa e sofrida? Quem são essas vidas anônimas, como a minha, que empurram a humanidade para a frente com seus desenganos?

Observo as estrelas. Começam a aparecer neste fim de tarde, como aeronaves remotas que vão a lugar algum. Não são como estrelas de um céu de interior, que formam no breu uma bruma sideral. Esparsas, tímidas, parecem incapazes de nos revelar o significado disso tudo – ou melhor, a absoluta ausência dele. Será que guardam em suas luzes opacas alguma resposta, algum clarão de compreensão para essa avalanche de pontos de interrogação que se derrama ao longo desta crônica?

Enquanto escrevo, Zé Ramalho canta no som: “Esperando alvorecer de novo /Esperando anoitecer pra ver /A clareza da oitava estrela /Esperando a madrugada vir /E eu não posso com a mão retê-la /E eu não passo de um rapaz comum”. Por aqui, escrevendo e bebendo um vinho branco, espero sem esperança alguma epifania que me revele o tal sentido da vida, enquanto vejo a noite se consumar, expulsando de vez o que resta de claridade e clarividência.

Por que seria eu esse felizardo, se sequer me empenho em crer, como aqueles que se amontoam em igrejas, templos, mesquitas, sinagogas? Como aqueles que fazem suas preces em silêncio, ajoelhados e solitários, terços na mão e uma inextinguível chama no coração. Por que haveria de compreender essa engrenagem infinita se, como diria Borges, a máquina do mundo é complexa demais para a simplicidade dos homens?

Diante da imensidão do universo, somos como formigas ou cães, como peixes que enxergam bondade em quem os encarcera numa prisão de vidro. Milênios se passaram, milênios se passarão e continuamos, como repórteres iniciantes, fazendo as mesmas perguntas: quem somos, de onde viemos, para onde vamos? E como resposta só ouvimos o som do silêncio.