O sombreiro do Cortejo: quem é o artista de rua que entra em transe na avenida

‘Entidade’ do Cortejo Afro participa no Pelourinho, nessa segunda-feira, de último ensaio antes do Carnaval

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  • Alexandre Lyrio

Publicado em 16 de fevereiro de 2020 às 07:30

- Atualizado há um ano

. Crédito: Marina Silva/CORREIO

No início, ele era só um folião como outro qualquer. Quer dizer, ele era um folião, mas não um folião como outro qualquer. Tanto que, uns 15 anos atrás, foi tomado por um dos seus rompantes. Aquele espírito performático já o havia incorporado em vários outros momentos. Mas, desse vez, o vocalista Açúcar Portella e o artista visual Alberto Pitta, diretor e criador do Cortejo Afro, assistiram tudo de cima do trio.

Eles viram quando aquele sujeito magro e desengonçado tomou o sombreiro das mãos de uma alegoreira do bloco e realizou movimentos impressionantemente ricos, como se ele e a alegoria fossem um só. Assim, Everaldo Santos Araújo, o Veko Araújo, 52 anos, se tornou o “sombreiro man” do Cortejo Afro. Veko é um multi artista. Performer, poeta, cantor, ator e qualquer coisa o que for possível se fazer com arte.  

Aprendeu tudo sozinho, nunca frequentou cursos além de alguns poucos semestres na Escola de Belas Artes da Ufba. Nunca teve professor além de um tio que fazia desenhos. “Ele é a nossa entidade! O nosso homem camaleônico”, diz Açúcar Portella. “Hoje eu sou um ser emblemático dentro do bloco”, concordou o próprio.

Veko nasceu na Vila Brandão, na época ainda conhecida como Avenida Brandão. Uma comunidade que fica de frente para a Baía de Todos-os-Santos, erguida na encosta entre o Corredor da Vitória e o Yatch Clube da Bahia. Tinha acesso livre ao clube, mesmo sendo um menino pobre da pequena Vila. Afinal de contas era filho da enfermeira Maria Helena e neto de Benício, marinheiro, ambos funcionários da casa.  

“A minha história, a minha infância, foi toda ali. Foi ali que aprendi a nadar, ali eu frequentei até os bailes infantis do Yatch Clube”, lembra. A casa em que Veko cresceu ainda é da família, com vista para um dos cenários mais deslumbrantes dessa terra. O primeiro contato com a arte foi com desenhos, legado do tio, que era pintor autodidata.

“Comecei desenhando, pintando, seguindo os passos do meu tio”, lembra. Veio a adolescência e a “rebeldia sem causa”, como ele mesmo admite. O único momento em que abriu mão do autodidatismo foi quando ingressou na Escola de Belas Artes da Ufba, na época em que passou a morar no Cabula. Mas teve que abandonar o curso no meio do caminho. “Precisava trabalhar”. Voltou a fazer tudo por conta própria.

Recebia alguns convites, mas nunca quis pousar em um lugar por muito tempo. Amigos o chamaram para fazer teatro em um grupo do bairro da Saúde. Foi aí que conheceu Açúcar Portella. Ainda não era o momento de Veko se incorporar ao mais novo dos blocos afros da Bahia. Primeiro, faria isso em uma banda de rock, onde desenvolveu sua alma performer.

Mas, a “onda” de Veko sempre foi o teatro. É do chamado teatro popular e faz parte da diretoria do Movimento do Teatro de Rua da Bahia. Fez participações em diversas peças, especialmente do teatro negro. Em 1995, fez papel de um dos escravos do coro da ópera Lídia de Oxum, de Lindemberg Cardoso e Hildázio Tavares, dirigido por Paulo Dourado. “O coro em uma ópera é de suma importância”. Também fez uma pontinha no filme Ó Paí, Ó.

Achado Em 1998, ficou sabendo da criação de um bloco afro que sairia no Carnaval, fundado por Alberto Pitta. Puxariam o “tal do Cortejo” Aloísio Menezes e Mariene de Castro. O bloco surgia com um conceito estético marcante, fundamentada nas artes plásticas e nas performances.

“Quando eu fundei o Cortejo, um das preocupações era de que, em hipótese alguma, ele se confundisse com qualquer outro bloco afro do Carnaval. Elegi então o branco sobre o branco enquanto cor. A outra coisa era a criação de um símbolo”, conta Alberto Pitta.

O sombreiro já era uma alegoria do bloco. Mas, quando viu a performance de Veko Araújo, depois de ele tomar um sombreiro das mãos de uma das alegoreiras, chegou à conclusão de que tinha um achado. “Era isso que eu precisava. Dessa marca! E a marca vai ser esse cara e esse elemento”, pensou Pitta.

Veko era um fã da entidade carnavalesca. Lembra que um dos primeiros desfiles teve a participação de Arnaldo Antunes. “Eu que tinha minha veia rocker virei fã do Cortejo Afro. Toda segunda-feira ia para a Praça do Reggae, no Pelourinho, e acompanhava de perto no Carnaval”. Até que, 15 anos atrás, saiu pela primeira vez como um dos integrantes do Cortejo.

Foi aí que aconteceu o momento mágico que mudaria o destino tanto do bloco quanto de Veko. Enquanto Portela cantava em cima do trio, ele se esbaldava no chão. De repente, o espírito performático bateu. Se dirigiu a uma das pessoas contratadas para carregar os sombreiros do bloco no desfile.“Pedi o sombreiro a uma das meninas. Ela negou. Disse: ‘não, meu chefe não vai gostar’. Eu insisti e disse para ela não se preocupar”, conta. Nesse momento, Veko entrou em um processo que ele chama de “transe carnavalis”. "Fui possuído. Entrei em transe. Entro em ‘transe carnavalis’ a cada apresentação”.De lá de cima, Portella Açúcar e o presidente da instituição, Roberto Pitta, o avistaram. “Depois eles me contaram que disseram: ‘Olha lá como aquele cara funciona’. Aquele cara era Veko”. Pronto. Na nova versão da temporada do Cortejo Afro, Veko já tava com o sombreiro. “Me esbarrei em um bloco afro que tem uma linguagem tecno. Minha veia rocker casou muito bem. Aí eu disse: ‘aqui é meu lugar’”.

O próprio Portella conta que já havia percebido o talento de Veko antes daquele Carnaval. "Eu já tinha visto ele com o sombreiro em uma micareta de Feira. Ele fez uma performance robótica que foi mágica. Lindo demais. Puro improviso. Esse é Veko. Puro improviso!”, define Portella. “Eu me apaixonei pelo ator. Aquela figura seca, estilosa. Ele era punk e eu nascido e criado no brega. Imagine!”.

Com o Cortejo Afro, Veko hoje viaja o mundo. “Fizemos temporadas em Portugal, na Alemanha e muitos outros lugares. E o sombreiro lá, broder!”, comemora. O sombreiro sempre existiu como referência dos blocos afros. Com a performance de Veko, o adereço ganhou um protagonismo impressionante.“O sombreiro vem para proteger a soberania do rei. É o alá de Oxalá, é o que protege”, observa Veko. “Na África, o sombreiro é para proteger autoridades. Reis, rainhas, chefes de tribos e etc. Trazendo para o candomblé, ele é um elemento consagrado a Oxalá”, confirma Alberto Pitta.Portela diz ser apaixonado pelo amigo. Mas não esconde que de vez em quando precisa puxar sua orelha. “Isso é um boêmio, gosta de cair na esbórnia. Eu tenho que chegar, meter a mão e tirar ele da esbórnia. Mas é um grande artista!”, afirma Portela.

A Boca   A relação de Veko e Portela se estreitou cada vez mais. A ponto de ambos estarem juntos em um projeto a parte. Se apresentam às quartas-feiras no A Boca Centro de Artes, no Santo Antônio Além do Carmo, uma mistura de bar, casa de show e caverna. Veko Araújo, Portella Açúcar e A Outra Banda da Aboca declamam poesias, cantam e contracenam no espaço.  

“Portela era a minha referência como artista. Eu era fã e de repente hoje é um cara que tá próximo”, diz Veko. “É um menino, desajuizado, mas nada que umas boas palmatórias não resolvam”, brinca Portella. Como se vê, o homem do sombreiro, o protetor do Cortejo, também precisa de proteção.  

Fundação O Cortejo Afro foi criado em 2 de julho de 1998, na comunidade de Pirajá. Sua origem ocorre dentro dos limites de um terreiro de candomblé, o Ilê Axé Oyá, sob a inspiração e orientação espiritual da ialorixá Anizia da Rocha Pitta, Mãe Santinha.

O bloco foi idealizado pelo artista plástico Alberto Pitta, que há mais de 35 anos, desenvolve trabalhos ligados à estética e cultura africana. A entidade, envolvida com esta proposta, desenvolve trabalhos sociais junto à sua comunidade durante o ano inteiro.

SERVIÇO A banda Cortejo Afro realiza segunda-feira (17) o último ensaio antes do Carnaval 2020, o Cortejo Afro à Fantasia. No show, que acontece no Largo Quincas Berro D’Água, Pelourinho, a partir de 21h, o grupo recebe como convidadas Margareth Menezes, a banda Bailinho de Quinta e Janine Mathias. O ingresso tem 50% de desconto para assinantes do jornal CORREIO. Quanto: 1º lote R$ 60 (inteira) e R$ 30 (meia-entrada). 2º lote R$ 80 (inteira) e R$ 40 (meia-entrada).

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