Onde diacho eu vou urinar?

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  • Flavia Azevedo

Publicado em 19 de janeiro de 2020 às 14:21

- Atualizado há um ano

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No Carnaval passado, precisei ficar um dia em casa, bebendo água. É que de tanto prender xixi na quinta, na sexta e no sábado, tive uma cistite que poderia facilmente virar infecção urinária. Eu não tava a fim de hospital e a cena era eu assistindo tudo pela tevê, morrendo de raiva, enquanto minha bexiga podia trabalhar livremente, sem imposições sociais.

Homem algum jamais sentiu na pele essa questão, mas alguns dias antes da Lavagem do Bonfim, a minha amiga me disse que não sabia se iria porque nos oito quilômetros do percurso, banheiro confortável é artigo raro. Sugeri "vai de saia e Havaianas" porque eu já tinha tomado a decisão mais acertada da minha vida de foliã. Só faltava ver se ia funcionar.

Na saída, rola uma tensão. O "xixi psicológico", aquele último em casa, ganha ares de TOC, tamanho o cuidado e espremeção para ter certeza de que nenhuma gota desnecessária estaria dentro de mim, pelo menos na primeira parte do trajeto. Tudo bem, nas duas primeiras horas. A cerveja se transforma também em suor e a urgência demora a chegar. Mas ela chega, claro.

Eu não uso banheiro químico, que havia aos montes no percurso. É apertado, o cheiro da química (na melhor das hipóteses) me enjoa, tenho nojo demais de tocar em qualquer coisa, não encosto meu bumbum no vaso e, com tantas questões, não consigo relaxar. Pois achamos um cantinho onde tinha uns caras fazendo xixi e fomos lá. Uma das amigas, tinha um coletor. A outra, tava de shorts. Eu de saia. Agachamos num cantinho e voilà! Pronto, um problema resolvido e outro instalado porque depois do primeiro, você sabe que não se consegue mais parar.

Dez minutos depois, a amiga do coletor precisou de novo e foi num químico. Mais vinte e era a minha vez. A festa perde a graça, não dá mais pra dançar direito e a ideia fixa, sem meias palavras é "onde diacho eu vou urinar"? Tava de saia e a cerveja tinha virado coragem quando vi o meu oásis: era a mangueira dos bombeiros, dando banho em geral. Numa transmissão de pensamento, minha amiga disse "xixi" (percebi por leitura labial) e eu pensei "é ali que eu vou", dane -se se alguém perceber. Era o povo dançando e eu mijando, numa alegria sem igual.

Daí em diante, não tive mais problema algum, além da sensação de que fui a última a entender. Era como se Exu, esse orixá que nos guia nas ruas em festa, tivesse, finalmente, me iluminado. Foi um rito de passagem assim como um primeiro orgasmo, um parto natural, algo transformador, de fato. A partir daquele momento, nunca mais eu me humilharia pedindo pra usar banheiros na casa dos outros nem gastaria cinco reais pra dar uma aliviada. Tinha deixado para trás as filas quilométricas, "barreirinhas" de amigos e a fama (porque demoro de conseguir, nesses casos), de que sou uma mulher "travada". Nunca mais eu iria em camarotes só pra usar o banheiro nem perderia o lado da bateria do Ilê (e meus amigos que só fui reencontrar no fim do desfile) porque precisei ficar meia hora numa fila pra fazer xixi num bar. Quem é mulher sabe que nossas idas ao banheiro são, praticamente, um circuito à parte.

Pode fazer carinha de nojo que não vou me importar. Ao contrário de todos os homens que você conhece, que guardam as ultimas gotas de volta nas calças, me lavei, discretamente e com água mineral, toda vez que liberei meus mililitros, nos lugares que achei apropriados. Sim, em pé e protegida por minha saia. No fim do percurso, mergulho no mar. Agora me sinto emancipada. E enquanto o mundo não estiver pronto pra acolher nossas particularidades (banheiro químico não serve pra mulher, você sabe), vamos inventando jeitinhos pra ocupar, plenamente, todos os espaços. No Carnaval passado, eu sofri. Nesse próximo, não sofro mais.