Os 50 anos da morte de um rei baiano 'coroado' pela rainha da Inglaterra

Pai de santo que mudou a história do Candomblé, Joãozinho da Goméia deu conselhos a Getúlio e JK, e encantou Elizabeth II

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  • Da Redação

Publicado em 26 de dezembro de 2021 às 06:03

- Atualizado há um ano

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Joãozinho da Goméia (ou Joãosinho da Goméa, como consta em capa de LP) é o babalorixá mais famoso da história (Foto: Fundação Pierre Verger) Era um Dia de Todos os Santos, 1º de novembro de 1968, quando Elizabeth II desembarcou pela primeira vez no Brasil como monarca. Após longo itinerário iniciado no Recife, passando em seguida por Salvador, Brasília, São Paulo, Campinas e Rio, encontrou dois reis na última parada.

No Maracanã, Pelé, de todos e do Santos, a quem entregou uma taça após um baba; noutro canto, não se sabe bem quando, foi arrebatada pelo encanto de um baiano, nascido João Alves Torres Filho em Inhambupe, crescido Joãozinho da Goméia em Salvador, transcendido Tata Londirá ou, como chancelou a Rainha da Inglaterra, o Rei do Candomblé.   Rainha Elizabeth II entrega taça a Pelé no Maracanã, após amistoso entre cariocas e paulistas (Foto: Arquivo Nacional) “Das mãos dela, ele (João) recebeu comenda como Rei do Candomblé. Não é para qualquer um! Foi dado pela Rainha Elizabeth o título de comendador e Rei do Candomblé”, relembra Cláudio Coelho, ogan do babalaô mais famoso da história, a quem auxiliou durante vários anos. 

A lembrança de Coelho foi tirada da cartola durante a gravação da série ‘Àgbára Dúdú – Narrativas Negras’, dirigida pela jornalista baiana Silvana Moura, e que contou em um dos episódios a história do ousado e provocativo Joãozinho da Goméia, uma das lideranças mais populares do candomblé entre as décadas de 1940 e 1960. (Clique aqui para assistir.)   Silvana Moura (óculos vermelho) durante gravação de episódio de série sobre Joãozinho (Foto: Divulgação) Em 27 de março completou 50 anos de sua morte, e mesmo após tanto tempo, suas histórias continuam sendo lembradas – que o diga a escola de samba Grande Rio, vice-campeã do Carnaval 2020 com o enredo 'Tata Londirá: o canto do caboclo no quilombo de Caxias'.   Escola de samba Grande Rio foi vice-campeã do Carnaval 2020 com enredo sobre Joãozinho (Foto: RioTur/Divulgação) Goméia da Bahia O tema faz referência ao nome religioso de Joãozinho à frente do Terreiro da Goméia, em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, hoje demolido, mas mesmo assim tombado, este ano, pelo Governo do Rio. É o reconhecimento da importância histórica de um lugar por onde talvez tenham passado decisões cruciais sobre o destino do Brasil – afinal, os presidentes Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek volta e meia apareciam para pedir conselhos ao babalaô –, e tudo isso, na verdade, nasceu aqui em Salvador, no bairro de São Caetano.  

Atualmente uma estação de tratamento da Embasa, a Goméia da Bahia, como costumam se referir hoje, tinha esse nome por estar localizada na Rua da Goméia, e costumava lotar em dias de celebração.

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Era já a segunda casa liderada por João – a primeira foi aberta em 1932, e funcionou poucos anos na Ladeira de Pedra, no Largo do Tanque. Já a Goméia ‘matriz’, recebida de doação “após um trabalho bem feito”, só fechou em 1948, quando o caboclo Pedra Preta – a quem Joãozinho dedicou sua vida religiosa – decidiu se mudar para o Rio. O rei levou toda a 'Família Real', que contava com 47 filhos de santo.

Celebridades Além de líderes políticos como Getúlio e JK, muitos outros famosos costumavam buscar orientações junto ao babalorixá, desde sua chegada no Sudeste.

“Era uma figura midiática. Há determinados anos em que ele aparece mais de 200 vezes na revista O Cruzeiro, no O Globo, nos veículos de maior circulação. Tinha a imprensa no calcanhar, cada passo que ele desse”, explica Silvana, que realizou extensa pesquisa sobre Pai João para fazer o documentário, lançado há um ano.

A fama, naturalmente, atraía outros famosos para perto, e João virou o ‘painho’ de muitíssimas celebridades da época. Tinha gente que não dava um peido sem consultá-lo.“Cauby Peixoto não fazia nada sem perguntar a Joãozinho, diz que não dava um passo. Chico Anysio também frequentava Duque de Caxias, se aconselhava com Pai João. Você sabe que (o personagem) Painho, de Chico Anysio, é totalmente inspirado em Joãozinho, né? Tudo bem que tem humor, mas é uma homenagem total”, pontua a jornalista e diretora.  

Tretas Mas humor, definitivamente, não era problema para Joãozinho da Goméia. Debochado, provocador, ele gostava de chamar a atenção, e motivos para isso não faltavam. Líder religioso e homossexual assumido, não perdia oportunidade de causar rebuliço, ganhar biscoito.  

Como sabia que essa postura, digamos, espalhafatosa, performática, incomodava – além da dita ‘sociedade’ – as grandes ialorixás da Bahia, sempre que podia dava um jeito de provocá-las, e a relação era conflituosa.  “Teve uma entrevista que ele, infelizmente, falou da minha avó, Mãe Senhora. Disse que ela era muito arrogante. E disse que quase todas eram arrogantes, metidas, e que a única que prestava era Mãe Menininha do Gantois”, menciona Silvana.  Consta, inclusive, que foi Pai João quem incentivou Mãe Menininha – sua única bróder – a ser mais midiática, e ela teria captado a mensagem, passando a ser menos arredia à imprensa, e possivelmente contribuindo para a redução do preconceito contra o candomblé.  

Importante destacar que o título de ‘Rei do Candomblé’, comumente usado pela imprensa, assim como ‘Rei Negro’, é anterior à vinda da Bethinha, e a designação também incomodava uns e outros. 

Mas o certo é que muita gente teve mesmo que morder as costas para Pai João, responsável por ‘levar’ e popularizar o candomblé no Sul/Sudeste. Também costureiro de mão cheia, foi ele quem provocou uma verdadeira revolução ao aplicar as cores e o brilho nas vestes de orixás, que até a década de 40 eram vestidos de forma simples.  

“O candomblé era familiar, dentro de casa, com pouco luxo, e ele foi uma pessoa que foi transformando num grande espetáculo visual. (...) E além de ser um grande babalorixá, ele era um artista da dança. Dá para dizer que é precursor da dança afro no Brasil, do Balé Folclórico da Bahia”, situa Silvana.  

Além da revolução visual, o babalorixá continuava a ‘causar’, diriam hoje ‘lacrar’, se apresentando em teatros, cassinos, fazendo cinema (aparece em ‘Copacabana Mon Amour’, de Rogério Sganzerla), gravando disco, mas era no Carnaval que essa veia artística saltava de vez. No de 1956, Joãozinho despertou a ira do povo-de-santo ao aparecer fantasiado de vedete Arlete. Manchete dos jornais e revistas, num deles foi questionado se sua fantasia contrariava as regras do candomblé. 

“De maneira nenhuma, meu amigo. Primeiro, porque antes de brincar eu pedi licença ao meu guia. Segundo, porque o fato de eu ter me fantasiado de mulher não implica desrespeito ao meu culto, que é uma Suíça de democracia. Os orixás sabem que a gente é feito de carne e osso e toleram, superiormente, as inerências da nossa condição humana, desde que não abusemos do livre arbítrio”, respondeu. Chamado de 'Rei Negro', Pai João nasceu em Inhambupe e, em Salvador, se tornou sacerdote do candomblé Angola (Foto: Fundação Pierre Verger) Comoção na despedida Além de ter se tornado um símbolo de diversidade, pluralidade e tolerância, e também da luta contra a marginalização racial, cultural e religiosa, o reinado de João também tem como uma das principais marcas a caridade. 

Encravado numa região muito pobre, o Terreiro da Goméia do Rio costumava ser lugar de acolhida para pessoas em situação de vulnerabilidade. A gratidão que tanta gente tinha por Joãozinho pode ser bem mensurada logo após sua morte precoce, em 19 de março de 1971, perto de completar 57 anos.   

Mobilizando caravanas de todo o Brasil, a comoção no adeus ao pai de santo pôde ser notada tanto na terra quanto no céu, como narra reportagem da revista Manchete da época. “Quando seu corpo chegou à sepultura, no cemitério de Caxias, um raio cortou o espaço, e desabou toda a água dos céus, ensopando as 3 mil pessoas que erguiam os braços e gritavam: Epa Hey, Iansã!”. Epa Rei do Candomblé!