Os anônimos que salvam o mundo

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  • Paulo Sales

Publicado em 16 de março de 2020 às 05:00

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“Tempos sombrios estão chegando. E os homens serão mais espertos. Não vão lutar pela verdade, vão simplesmente ignorá-la”. Essa frase, dita dentro de uma igreja por um pintor de afrescos sacros no filme Uma Vida Oculta, de Terrence Malick, talvez represente o cerne de uma época. Ou, mais provavelmente, de várias. Estamos, aqui, no período mais devastador da história recente: a ascensão do nazismo, que nos legou a mais brutal das guerras e a mais brutal das aberrações contra o ser humano: o holocausto.

É num vilarejo do interior da Áustria, anexada em 1938 à Alemanha de Hitler, que se desenvolve a história de Franz Jägerstätter (August Diehl), um homem simples, mas de convicções fortes e profundamente religioso. Ele vive em paz com a família, tirando o sustento da terra num cenário idílico. Uma vida estoica, sem luxos, amparada na confiança e no amor mútuos. Convocado para a guerra, Franz se recusa a lutar ou ter qualquer participação no conflito, muito menos jurar lealdade ao Führer. Esse ato de desobediência civil custará caro a si mesmo e a sua família.

É uma obra belíssima, que nos faz lembrar uma sinfonia, com a habitual narrativa não-linear – repleta de falas breves em off, imagens arrebatadoras e trilha onipresente – que se tornou a marca de Malick. Em suas três horas de duração, fala sobre fé, devoção, auto-sacrifício, compaixão e livre-arbítrio. Franz é um Jó moderno, cuja crença não se abala mesmo nos momentos mais sórdidos, quando será privado da liberdade e do convívio de quem ama. Sua recusa à guerra poderia ser associada a uma teimosia renitente, mas é algo muito maior e mais valoroso do que isso.

“Eu não sei tudo. Um homem pode errar e não pode voltar atrás para aclarar sua vida. Talvez ele queira voltar atrás, mas não pode. Mas tenho um sentimento dentro de mim de que não posso fazer o que acredito que é errado”, diz ele ao juiz nazista (Bruno Ganz, em seu filme derradeiro) que irá condená-lo, mas que tenta demovê-lo das suas convicções tão arraigadas. A questão fundamental que o filme coloca diante de nós é: de que valem essas convicções? Até que ponto um homem pode abdicar da própria vida em nome do que pensa ser certo? Ao final, Fani (Valerie Pachner), mulher de Franz, tenta abarcar e compreender a tragédia de sua família: “Um tempo virá em que saberemos para que serve tudo isso.”

Uma Vida Oculta fala dessas existências anônimas que são arrancadas do seu mundo e tragadas pela Grande História. Mas que, silenciosamente e quase sempre sem qualquer reconhecimento, fazem a civilização avançar, sobretudo quando ela se vê mais ameaçada. Está lá na citação final, tirada de um romance da escritora George Eliot: “O bem crescente do mundo depende em parte de atos não históricos. Se as coisas não vão tão mal para nós como poderiam ter ido, metade devemos àqueles que viveram fielmente uma vida anônima e repousam em túmulos que ninguém visita.”

Ou, como diria Borges, no lindo poema Os Justos: “Essas pessoas, que se ignoram, estão a salvar o mundo.”