Os homens aparentam não temer a lei quando se trata de agredir e matar mulheres

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Publicado em 20 de agosto de 2018 às 05:00

- Atualizado há um ano

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Apesar de a legislação endurecer, da tipificação dos crimes contra as mulheres adquirirem qualificadoras que vêm aumentando as penas, no Brasil, os homens ignoram tudo isso e aparentam não temer a lei quando se trata de agredir e matar as mulheres. Nos últimos dias vários episódios sangrentos envolvendo o assassinato de mulheres por companheiros ou ex-companheiros se sucederam no país. Raros são os dias em que os principais veículos noticiosos não têm como destaque um caso de agressão ou de feminicídio.

As estatísticas dos crimes contra as mulheres são tão altas que até mesmo a novela da grade mais leve da televisão brasileira, a das seis, incluiu em sua trama não apenas uma cena de estupro, como também uma peça de ativismo. Após o encerramento do capítulo, exibiu  uma convocação à audiência: Violência contra a mulher é crime. Denuncie. Ligue 180. Central de Atendimento à Mulher. Mas, no conjunto das coisas, a imprensa anda tão insensível que, ao elogiar o realismo da cena, cometeu a barbeiragem de considerar a iniciativa da emissora “a cereja do bolo”. De que a adianta inserir realismo na ficção, se nem a imprensa demonstra capacidade de lidar com uma interseção tão poderosa e transforma tudo em clichê barato?

MULHERES APAIXONADAS Cada vez mais jornalistas e público não lembram do que aconteceu ontem, como se a linha do tempo das coisas estivesse submetendo-se à lógica dos stories das redes sociais, nas quais os “fatos” só duram 24 horas e apagam-se. Nos textões elogiosos à novela das seis, não vi menções às cenas realistas criadas por Manoel Carlos e outros tantos autores de novelas, desde lá atrás. Todo mundo parece ter esquecido, por exemplo, das surras e raquetadas dadas por Marcos (Dan Stulbach) em Raquel (Helena Ranaldi) em “Mulheres Apaixonadas”. De lá para cá, pouco mudou na realidade brasileira, apesar da legislação mais rigorosa. Os Marcos brasileiros continuam agredindo e matando. 

No contexto da violência contra a mulher, os casos são tão estarrecedores que estamos perdendo as noções mais elementares de espanto e estranheza. Embora ainda fiquemos atordoados diante de crimes bárbaros, como a execução, a tiros no rosto, da corretora Karina Garofalo, ao lado do seu filho de 11 anos, e da morte de Tatiane Spitzner, atirada de um edifício pelo marido após espancá-la brutalmente, aparentemente ignoramos detalhes sórdidos que passam despercebidos em nosso processo de adestramento rumo à banalização das nossas reações. Quem se deu conta de que o ex-marido de Karina mandou abandonar o veículo usado no crime (alugado no nome do matador) na porta da casa da ex-mulher do atual marido da vítima? Assim, a covardia iria ao sétimo céu: mata sua ex-mulher por ciúmes, não dividiria o patrimônio, ficaria com a guarda do filho e incriminaria uma mulher inocente. É tanta sordidez que gera confusão: é certeza de impunidade ou burrice?

VIDEO GAME Imaginemos como será crescer e amadurecer sob a marca de ter a vida destroçada por assistir à execução da mãe, reconhecer o primo como atirador, identificar a moto do próprio pai na cena do crime e ter que lidar com uma frase como essa incrustada na crônica policial brasileira: “papai mandou matar mamãe”. Além da dor pela orfandade materna, da brutalidade da cena presenciada, da violência psíquica que é, aos 11 anos, depor à polícia como testemunha fundamental para elucidar o assassinato da mãe, identificando o próprio pai como mandante do crime, o filho de Karina tornou-se praticamente uma personagem.

A fala do menino, num depoimento que deveria ser minimamente preservado, foi transformada em manchete. A polícia saiu distribuindo tudo sobre o garoto. O mínimo que se destacou foi que ele, por ser aficionado em vídeo game, descreveu o tipo da arma e afirmou que havia um silenciador acoplado à pistola. Com tais descrições publicizadas, ninguém se espantou, o que diz muito sobre o quanto estamos mergulhados na cultura da violência. Transformamos uma vítima em personagem e sequer nos damos conta.