Os mestres que nos servem de farol

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  • Paulo Sales

Publicado em 12 de agosto de 2019 às 05:00

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Mestres da baianidade: Jorge Amado, Caetano Veloso e Dorival Caymmi (fotos/divulgação) Numa rede social, um amigo fez a conexão entre a data da morte de Jorge Amado (há 18 anos) e a do nascimento de Caetano Veloso (há 77), ambas celebradas na semana passada. A conexão faz todo sentido. Em suas respectivas searas artísticas, os dois - e mais Dorival Caymmi - foram responsáveis por expandir uma ideia de baianidade (seja lá o que isso signifique) rumo às fronteiras mais remotas, fazendo da nossa aldeia universo. Jorge é um manancial de referências de uma Bahia que teima em permanecer no imaginário do seu povo, a despeito da modernidade que aqui historicamente chega a passos de cágado. Essa Bahia pode ser encontrada na orla da Ribeira, nos subúrbios do Recôncavo que ressoam a samba-de-roda ou na charmosa decadência urbana de Ilhéus.

Caetano foi além. Traz consigo a Santo Amaro da infância e a Salvador vanguardista dos anos 60, mas mescla essa herança afetiva com uma percepção aguda do espírito do seu tempo. Transa, aquele que é talvez o seu melhor álbum, é sintomático nesse sentido. Nele, o vapor de Cachoeira que não navega mais no mar convive com o reggae recém-ouvido na Portobello Road, em Londres. Capital inglesa que, por sinal, representou uma cisão na sua trajetória. Ali no exílio, tristíssimo e saudoso, Caetano abandonou o artista promissor, mas ainda imaturo, para se tornar um compositor pleno. Capaz de, em um mesmo disco, captar o alvorecer de um mundo globalizado (E eu, menos estrangeiro no lugar que no momento / Sigo mais sozinho caminhando contra o vento) e rememorar o mais íntimo do seu eu, na lindeza chamada Genipapo Absoluto (Tudo são trechos que escuto, vêm dela / Pois minha mãe é minha voz).

Às vezes me pergunto o que seria da Bahia sem os mestres que produziu. Em vez de Roma Negra ou Lisboa de além-mar, Salvador seria uma cidade banal, uma Acapulco do Hemisfério Sul. Mas, pensando bem, isso seria impossível. Somos feitos dessa matéria amorfa e indefinível que nos habita, e nela estão nossa miséria e nossa grandeza. A negritude ostensiva que enriquece nossa cultura, enquanto permanece vivendo no século 19, espremida entre paredes sem reboco, brutalidade fardada e empregos aviltantes. E o legado arquitetônico lusitano, responsável por aqueles momentos de pasmo que sentimos ao olhar o mar da Baía do Elevador Lacerda ou o Farol da Barra após a curva do Cristo.

Um lugar assim não poderia prescindir dos seus gênios. Eles nasceriam inevitavelmente, fatalmente. Uma geração espontânea que se materializa num canto de louvor ao mar, numa prosaica receita de moqueca ou na reminiscência de um tamarindeiro onde o imperador fez xixi. Ah, claro, uma ponta desagradável de exotismo calculado, de macumba para turista, nessas referências. Mas como dissociar essência de embuste, se tudo é uma coisa só, tudo junto e misturado? Muitas vezes decadente e tristemente miserável, a Bahia, com sua capital muito velha e muito linda, é por outro lado incompreensível, e não menos adorável.