Pacientes e médicos recordam o legado de Elsimar Coutinho

Mulheres tratadas pelo cientista, pesquisadores e ex-alunos falam da importância dele em suas vidas e para a ciência

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  • Hilza Cordeiro

Publicado em 18 de agosto de 2020 às 05:30

- Atualizado há um ano

. Crédito: Arquivo CORREIO
. por Foto: Emanuela Siqueira/Acervo pessoal

A professora e produtora audiovisual Emanuela Siqueira tinha apenas 16 anos quando foi ao consultório de Dr. Elsimar Coutinho pela primeira vez e, nos mais de 20 anos sendo atendida por ele, construiu uma amizade que a levou a fazer o documentário Janelas Fechadas, sobre a vida do médico, cientista e professor baiano morto nesta segunda-feira, 17. Desde os 11 anos, Emanuela vivia de especialista em especialista por causa de uma doença de nascença, uma condição rara e de nome difícil: hiperplasia adrenal congênita, que afeta glândulas e inibe a produção de hormônios importantes. 

No vai e vem dessas clínicas, o diagnóstico demorou muito tempo e o tratamento convencional era feito com corticoides — um grupo de hormônios —, aos quais ela não se adaptou por sofrer com os efeitos colaterais e, num ato adolescente, chegou a jogar os remédios no lixo.

“Minha mãe se deu conta disso, de que eu não estava tomando, e se desesperou porque as crises adrenais elas têm um certo risco porque mexe com sódio, potássio, pressão. Foi aí que alguém sugeriu aos meus pais que me levassem em Dr. Elsimar e eu fiquei muito surpresa desde o primeiro contato porque ele era o oposto de todos os outros médicos. Ninguém nunca tinha conversado comigo da forma que ele conversou”, recorda ela, hoje com 36 anos.

Quando Emanuela chegou, Dr. Elsimar logo orientou que a condição dela era mesmo muito rara e, naquela época, ainda não tinha tratado ninguém com o mesmo problema, embora conhecesse outros dois casos. “Ele foi super sincero e disse que íamos tentar bloqueando a menstruação e fazendo reposição hormonal, mas não tinha uma previsão se eu melhoraria em seis meses, um, dois anos. Daí, antes mesmo de completar dois anos, eu já me sentia muito melhor, não só fisicamente, com menos dores, mas eu recuperei a minha autoestima”, conta a baiana, que hoje vive em Porto Alegre (RS), e tem dois filhos.

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Os tratamentos hormonais propostos pelo médico também revolucionaram a vida da jornalista Ana Paula Vargens, 49, que o procurou após um histórico de perda da primeira gravidez e um difícil quadro de endometriose, com presença de muitos cistos, alguns maiores que o próprio útero. A indicação de Elsimar foi o implante Elmetrin com testosterona para fazer murchar os cistos. 

“Ele brincava que os cistos iriam morrer de fome pela falta do sangue menstrual e assim eu poderia fazer uma cirurgia para retirada dos cistos já menores, com menos riscos de perder ovários”, recorda. Só após esse tratamento foi que Ana finalmente conseguiu ser mãe de Luiza, atualmente com 15 anos. “Ele dizia que era 50% pai da minha Luiza. [O papel de Elsimar] foi uma benção. A sua capacidade era algo sublime. A simplicidade com que transmitia conhecimento me dava uma força e crença descomunal e serei eternamente grata. Ele me dizia: 'Não quero ver você chorar! Você vai conseguir. Estamos juntos nisso'”, conta. Dr. Elsimar Coutinho em palestra para gestantes (Foto: Gildo Lima/Arquivo CORREIO) Respeito dos colegas

Professora do Departamento de Ginecologia, Obstetrícia e Reprodução Humana da Ufba, a médica Vera Lobo descreve Elsimar como um cientista pioneiro nos estudos sobre a endometriose. Segundo ela, o médico pensava à frente, sobretudo para uma época em que não havia recursos para pesquisas na universidade. 

“Quando ele idealizava alguma coisa, ele transformava em real. Ele conseguia convencer a todos que estavam em volta dele. Na época, a gente não tinha recurso de material, equipamento, laboratório. Ele idealizava e improvisava com o que tínhamos. Era muito estudioso, sistemático, tinha uma inquietação científica que não sei se vou ver em outra pessoa”, conta ela, que trabalhou diretamente com ele há mais de quatro décadas, ainda na graduação, e foi orientada por ele na sua tese de mestrado.

Vera relata que em quase todas as faculdades de Medicina existe um departamento de Ginecologia e Obstetrícia [GO] e o da Ufba é o único que ela tem conhecimento que leva também o nome Reprodução Humana. “Reprodução é uma especialização da área de GO. A Ufba tem um departamento com esse nome por força dele como professor".

A médica conta que ele tinha contatos com a produção científica de todo o mundo e promovia um encontro chamado “Sessão Científica”, às segundas-feiras, quando levava livros por ele mesmo traduzidos para compartilhar com os alunos.

Pesquisador de métodos anticoncepcionais, Vera conta que ele brincava de se autodefinir como “pai da gestrinona”, substância para o controle da endometriose e miomatose. Médico membro da equipe da Clínica Elsimar Coutinho e considerado pelos pares como um “herdeiro” de Elsimar por ser quem mais participou das pesquisas com ele, Dr. Hugo Maia diz que, graças ao desenvolvimento da gestrinona, Elsimar aperfeiçoou o tratamento de miomas.“Acho que de todas as contribuições que ele fez, talvez a principal seja o desenvolvimento da gestrinona. Foi o que teve maior impacto na medicina porque ele desenvolveu um tratamento para a endometriose que eu acho que é o melhor tratamento que existe. Salvou muitas mulheres de cirurgias e é realmente eficaz. É um tratamento muito personalizado, ele desenvolveu a molécula e viajou todos os lugares do mundo. Ele é uma pessoa que venceu a barreira do comum, está no panteão dos grandes médicos”, conta Maia.Parceiro de trabalho de Elsimar por 27 anos no centro de pesquisa em reprodução humana da Maternidade Climério de Oliveira, Dr. Antônio Carlos Vieira Lopes relata que o cientista foi um homem que, além de tudo, divulgava a necessidade do controle populacional e tinha coragem de enfrentar o pensamento mais conservador. “Ele encarava isso, que era outra frente de batalha que ele tinha com a igreja, a sociedade, políticos. Ele pregava que tinha que ter controle de natalidade, foi daí que surgiu o Ceparh, a primeira clínica no Brasil que disponibilizada gratuitamente métodos contraceptivos a pessoas de baixa renda. Naquela ocasião, a taxa de natalidade no brasil era altíssima. Com coragem, o conhecimento dele foi que o abriu o debate de contracepção no Brasil, numa época em que era proibido falar disso”, completa. 

Fatos marcantes na trajetória do cientista:

*Nascimento - O médico Elsimar Coutinho nasceu em Pojuca, na Região Metropolitana de Salvador, em 18 de maio de 1930;

*Farmacêutico e médico  - Cursou a Universidade Federal da Bahia, onde  graduou-se em Farmácia e Bioquímica, em 1951, e em Medicina, em 1956; Doutor duas vezes  O primeiro doutorado foi em Farmácia, com a tese 'Perfil electroforético das proteínas plasmáticas de anfíbios e répteis', defendida em 1960. Emendou com um doutorado em Medicina e concluiu o curso em 1963, com tese orientada por Gorge  Corner, o descobridor do hormônio progesterona; 

*Autor - Foram pelo menos 10 livros publicados. O primeiro deles foi   lançado em 1974, nos Estados Unidos: ‘Physiology and Genetics of Reproduction’, ou Fisiologia e Genéticas da Reprodução, em tradução livre. Fluente em inglês e francês,  voltou a publicar  em 1976 sobre tema que ainda é tabu hoje. A obra  ‘Aborto Provocado’ é a sua  primeira em português. Já 'Menstruação - A Sangria Inútil'. seu best-seller, foi lançãdo 20 anos depois, em 1976;

*Pesquisador - No início dos anos 1960, estudando o emprego de substâncias progestínicas na prevenção do trabalho de parto prematuro, observou e  descreveu o efeito anticoncepcional da medroxiprogesterona (MPA) e propôs  em seus trabalhos clínicos os primeiros anticoncepcionais injetáveis. A partir daí, Elsimar   despontou como uma das maiores expressões na endocrinologia da reprodução e no planejamento familiar, tendo desenvolvido além do primeiro anticoncepcional injetável de efeito prolongado (Depo Provera), a primeira pílula anticoncepcional contendo Norgestrel;

*Pioneiro - Em 1982, fez o relato do primeiro caso de regressão de mioma seguida de gravidez, relatada na literatura médica internacional. A partir daí, foi um dos fundadores no "International Committee for Contraceptive Research" - ICCR e membro do Conselho Diretor do Programa de Reprodução Humana durante seis anos e do "Steering Committee of the Task Force on Infertility of the Expanded Programme in Human Reproduction" da Organização Mundial de Saúde, durante oito anos;

*Educador - Na década de 1990, o orofessor Elsimar Coutinho tornou-se muito conhecido pelo público em geral através de sua participação em programas educativos, onde falava  sobre fertilidade, Infertilidade, sexualidade e planejamento familiar em âmbito nacional.

Os livros de Elsimar Coutinho:1974 - Fisiologia e Genéticas da Reprodução, em coautoria com o pesquisador Fritz Fuchas;

1976 - ‘Ovum Transport and Fertility Regulation’, em coautoria com M. Harper, C. Pauerstein, C. Adams, H. Croxatto e D. Patton;

1981 - O Dispositivo Intrauterino;

1995 - Progress in the Management of Endometriosis. The Proceedings of the 4th World Congress on Endometriosis, em coautoria com Paulo Spinola e Lesley Hanson de Moura;

1996 - Menstruação - A Sangria Inútil;

1998 - O Sexo do Ciúme;

1998 - O Descontrole da Natalidade;

1999 - Reproductive Medicine: A Millennium Review, em coautoria comcom Paulo Spinola;

1999 - Is Menstruation Obsolete?, em coautoria com Sheldon J. Segal

2000 - Current Knowledge in Reproductive Medicine, em coautoria com Paulo Spinola*Colaborou o repórter Vinicius Nascimento