Padre Pinto e Joãozinho da Goméia disputam visibilidade em ‘rua ecumênica’ de San Keite

Torres da Embasa e da Igreja de São Caetano marcam histórias de religiosos com perfis e trajetórias parecidas

  • D
  • Da Redação

Publicado em 5 de setembro de 2021 às 06:30

- Atualizado há um ano

. Crédito: .
Padre Pinto durante uma das celebrações que rendeu polêmica na imprensa por Foto: Antônio Queirós/Arquivo CORREIO

Foto: Reprodução As pichações com inscrições “Bolsonaro 17” nas paredes da Rua Ana Mariani Bittencourt, na região da Goméia de São Caetano, podem amedrontar mais que a possibilidade de um assalto no local – amigos da época da escola me relatam o aumento da insegurança –, mas fica a dica que (co)existem, ali mesmo, muitas possibilidades de pedido de proteção divina.

O cardápio da salvação é bastante diversificado para um trecho de apenas 200 metros: à esquerda de quem entra tem Igreja Católica, Centro Espírita, Irmandade Mística, Igreja Evangélica e até UPA! Detalhe é que passando tudo isso, tu vai bater de frente com a Nova Jerusalém Materiais de Construção, que é uma espécie de explicação para tudo que foi construído antes.

Caso decida perseverar no caminho e percorrer outros 200 metros, vai encontrar um disco voador estacionário. Não dá pra pedir proteção extraterrena, suponho, porque na verdade é um reservatório da Embasa, mas trago a palavra da salvação: era exatamente ali que, quase um século atrás, funcionava o primeiro grande terreiro comandado por Joãozinho da Goméia, “O Rei do Candomblé”. 

Nascido João Alves Torres Filho, em Inhambupe (BA), no ano da graça de 1914, Joãozinho, também chamado Tata Londirá, foi o mais famoso babalorixá da história, e ajudou a popularizar o candomblé entre os sudestinos. Sua trajetória é marcada por polêmicas com a “cúpula” dos cultos afro-brasileiros, muitas vezes incomodada com seu comportamento, suas vestimentas, ideias e especialmente suas danças – tretas acompanhadas de perto pela imprensa dos anos 50 e 60. Joãozinho da Goméia, falecido há 50 anos, é o babalorixá mais famoso da história (Foto: Fundação Pierre Verger) O padre José de Souza Pinto, saudoso Padre Pinto, falecido há dois anos, tem currículo bem parecido nesse sentido: os meios de comunicação faziam questão de repercutir as atitudes da liderança católica, que não raro pegavam mal em setores mais conservadores da religião que professava. Padre Pinto fez história na Lapinha, mas passou os últimos dias como vigário na Paróquia de São Caetano (Foto: Paulo M. Azevedo/Arquivo CORREIO) Dança das águas O primeiro ponto de convergência – com sintonia ainda mais fina – é a dança. Bailarino de formação clássica e artista plástico, o padre José de Souza Pinto gostava de mostrar suas habilidades. Em 2006, quando rezou uma missa vestido de índio e com roupas do candomblé, na Igreja da Lapinha, a “sociedade baiana” se escandalizou com seu gingado. TVs e jornais deram ampla cobertura, e só se falava nisso na Bahia e uma banda de Sergipe.

Este caso ocorreu durante a celebração da Festa de Reis, quando Padre Pinto deu na telha de celebrar a santa missa todo maquiado, com trajes de guerreiro indígena e de Oxum, orixá das águas doces.

Bom, a mais célebre polêmica envolvendo Joãozinho da Goméia – cujo antigo terreiro hoje é território de águas doces – também envolve uma festa tradicional de começo de ano. Era o Carnaval de 1956, no Rio, quando Joãozinho chocou o povo-de-santo ao aparecer fantasiado de vedete Arlete. Foi, igualmente, manchete de vários jornais e revistas do país, como também nas vezes em que, como Padre Pinto, emulou outros cultos no seu próprio, incluindo encantados indígenas.

Em entrevista a um repórter de O Cruzeiro, a revista mais importante do país na época, chegou a ser questionado se sua fantasia infringia as regras do candomblé. “De maneira nenhuma, meu amigo. Primeiro, porque antes de brincar eu pedi licença ao meu guia. Segundo, porque o fato de eu ter me fantasiado de mulher não implica desrespeito ao meu culto, que é uma Suíça de democracia. Os orixás sabem que a gente é feito de carne e osso e toleram, superiormente, as inerências da nossa condição humana, desde que não abusemos do livre arbítrio”, devolveu.Polos de atração Apesar das críticas e resistências, tanto o padre quanto o babalorixá tiveram suas vidas marcadas por questões que vão além da ousadia e alegria: são reconhecidamente polos de atração de pessoas, seguidores para suas respectivas missões de fé. 

No caso de Padre Pinto, seu empenho podia ser visto na revitalização da Festa de Reis, na Lapinha, estendida à sua pregação por respeito às diferenças de crença: muitos fiéis voltaram, animados com as missas criativas, homilias irreverentes, fé na rapaziada.

Faleceu após alguns anos ‘escondido’ das polêmicas, na Paróquia São Caetano da Divina Providência, dona da torre quadrada que abre a Rua Ana Mariani – igreja que por sinal eu frequentei e baguncei mais novo. Antes, estudei nos colégios Pedro Ribeiro e Pinto de Carvalho, que ficam no lado oposto aos mencionados templos da via ecumênica.

Sobre Joãozinho, seu trabalho a partir de São Caetano também fez uma multidão acessar o sagrado. O primeiro terreiro, num local chamado Ladeira de Pedra, logo ficou pequeno e ele foi para a Goméia. Com a anuência do caboclo Pedra Preta, levou o nome da localidade de São Caetano para Duque de Caxias, no Rio, onde ganhou o Brasil e o mundo.

O Terreiro da Goméia de lá (hoje destruído, mas em processo de tombamento) ganhou notoriedade pelas visitas de grandes personalidades, incluindo políticos influentes. Conta-se que João costumava receber presidentes da República e recepcionou até a Rainha Elizabeth II, antes dela ser coroada. A majestade no encontro, portanto, era o baiano. Grande Rio foi vice-campeã do Carnaval 2020 com enredo “Tata Londirá: o canto do caboclo no quilombo de Caxias”, sobre Joãozinho (Foto: RioTur/Divulgação) No último Carnaval carioca, Joãozinho foi tema da Grande Rio, que só não levou o estandarte porque o título já estava em casa: a Viradouro venceu homenageando as Ganhadeiras de Itapuã. Este ano, ganhou diversas homenagens por conta dos 50 anos de sua morte, e vai ganhar um texto exclusivo nessa coluna.

Pontos altos Aliás, o texto sobre ele já seria hoje, se eu não me atentasse (a tempo) de que as duas construções mais altas de San Keite são, de alguma forma, ligadas a figuras tão grandes e, como eles faziam questão de ser, marcantes, visíveis, presentes. 

Além de poder ser vistas de vários pontos, cheguei à conclusão que elas meio que se olham, admiradas, mas não consegui extrair mais poesia que isso. Talvez não seja preciso perfumar a flor.

[[galeria]]

Mas para compensar a ‘falta’ com meu xará Joãozinho, que teve a homenagem adiada, pedi uma reflexão ao nosso xará João Faustino, pedagogo, historiador, Egbome do Ilê Axé Babá Omim Guiã, em Itaparica, e Baba Egbé do IIê Axé Odé Babá Ati Olubalami, em Simões Filho. O desafio ao meu amigo, com quem estudei no Pedro Ribeiro, foi explicar o simbolismo da presença da água naquele que foi o primeiro trono do ‘Rei do Candomblé’.

“As águas purificam qualquer ambiente e é essencial à vitalidade. Onde existe a caixa d’água, hoje, marca o ponto da existência do sagrado, do terreiro do saudoso Joãozinho da Goméia. O axé plantado ali é único e sempre será vindouro! Salve o axé da Goméia, viva Joãozinho em toda a sua ancestralidade!” Viva, João!