Página infeliz da nossa história

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  • Paulo Sales

Publicado em 22 de fevereiro de 2021 às 05:00

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Nos últimos tempos, uma página infeliz da nossa história, como cantou Chico Buarque, tem voltado a nos assombrar. Algo que se tornou habitual desde o fatídico dia da deposição de Dilma Rousseff, quando um deputado federal sem qualquer serviço prestado ao país louvou um torturador em praça pública e não foi preso ou processado por isso. Dois anos depois, o tal deputado foi alçado à condição de presidente da República, e permanece incapaz de prestar qualquer serviço ao país – a não ser como exemplo do que não deve ser feito.

Na semana passada, a ditadura militar voltou a ser citada. Desta vez por outro deputado federal sem qualquer serviço prestado ao país: uma excrescência de nome Daniel Silveira, que vociferou contra os ministros do STF e pediu a volta do AI-5, o mais terrível instrumento usado pelos militares para consolidar o terrorismo de Estado no final dos anos 60. Ao menos, agora houve uma reação. O elemento foi devidamente conduzido ao xadrez pelo próprio STF.

Mas talvez essa decisão tenha chegado tarde. Deveríamos ter sido mais rigorosos no julgamento dos excessos do regime militar. A Argentina e, em menor medida, o Chile fizeram isso. Nós fomos tíbios e optamos pelo esquecimento, fazendo com que um dos períodos mais nefastos da nossa história se tornasse uma passagem desbotada da memória, para usar novamente as palavras de Chico. Apesar dos esforços da Comissão da Verdade.

Com isso, criminosos permaneceram impunes, mesmo quando processados e condenados. O ídolo do atual presidente, Carlos Alberto Brilhante Ustra, foi um deles. Comandante do DOI-CODI em São Paulo, um verdadeiro campo de extermínio, morreu sem ter passado um dia sequer na prisão, mesmo tendo sido um dos tipos mais abjetos que já habitaram este vale de lágrimas. Não vou descrever aqui suas técnicas de tortura, apenas lamento que não tenha tido o mesmo fim de Jorge Videla, o ex-presidente argentino que terminou seus dias encarcerado.

O resultado disso tudo é um país que nunca cicatriza as suas feridas. As últimas décadas de democracia passaram a impressão de que tínhamos conseguido superar o passado sombrio, mas ele estava apenas adormecido. Exemplo disso é a relativização do próprio papel da ditadura. Um regime que é a origem da maior parte das mazelas que vivemos hoje: a violência exacerbada (sobretudo a policial), a corrupção desenfreada em conluio com empreiteiras, a explosão demográfica, o aumento exponencial da miséria.

Hoje, como justificativa para o estado de exceção, nos deparamos com os argumentos mais disparatados: “Meus pais nunca foram torturados”, “não tinha tortura para quem não estava fazendo baderna”, “o cidadão de bem estava seguro em casa”. Tão deplorável quanto não levar em conta o fato de o terrorismo de Estado ser ilegítimo em si mesmo, é pensar que só pessoas envolvidas diretamente com a luta armada foram torturadas e mortas entre os anos de 1964 e 1985.

Não. Padres que repudiavam a violência foram torturados. Mães de estudantes ligados ao movimento estudantil foram torturadas. Jornalistas que denunciavam crimes dos governos militares foram torturados. Gente simples do interior foi torturada. Até quem estava apenas no lugar errado na hora errada foi torturado, como mostra o filme Pra Frente, Brasil, de Roberto Farias. Nele, um homem é sequestrado por engano pelas forças da repressão e morre sob tortura nas mãos dos militares. Relativizar uma verdade tão grave é ser no mínimo conivente com ela.