Pai, você volta?

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  • D
  • Da Redação

Publicado em 8 de fevereiro de 2020 às 14:00

- Atualizado há um ano

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Despedidas são sempre difíceis. Independente da circunstância. Toda despedida carrega o peso da falta que a ausência traz. Ela é o marco em nossa memória do momento que aquilo que era próximo passa a ser distante. E não tem tecnologia que consiga tornar a distância menos distante. Celulares, video-conferências e outras invenções até podem amenizar o sentimento que a distância causa. Mas no fim, quando nos despedimos de alguém, o tempo e os momentos que poderiam ser juntos, ganham uma nova perspectiva ao serem vividos por cada parte sozinho. E assim vamos avançando ao longo dos anos. Cada vez menos tempo juntos, e mais tempo tentando "fazer a vida dar certo” individualmente.

E não pense que despedidas são "privilégios" de pessoas como eu, que viaja toda semana para algum canto do país. Mudei de cidade 12 vezes nos últimos 8 anos por motivos profissionais e ainda assim não me acostumo com despedidas. Entre as minhas, algumas foram cheias de choro. Outras mais tranquilas. Mas o despedir-se sempre provoca uma série de reflexões para quem se presta a respirar cada um destes episódios. São rupturas. E, cá entre nós, nem todo mundo - pra não dizer ninguém - encara bem as rupturas relacionais que a vida nos faz passar. É a quebra do contato acessível no momento que bem quiser.

Estou falando até aqui daquelas despedidas geográficas e temporais. Aquele tipo de “até logo” que dura tempo suficiente até o sol se pôr e o marido reencontrar a esposa depois de seus intensos horários de trabalho. Até mesmo um “nos vemos em breve” prometido durante um abraço de lágrimas quando alguém está mudando de cidade e deixando amigos da vida toda. Essas são despedidas suportáveis, eu diria. São doloridas e perturbadoras, sim. Mas toda essa dor será facilmente amortecida com a dádiva dos encontros sazonais que provavelmente acontecerão."Mas as despedidas possuem um guarda-roupa gigantesco. Elas são capazes de se vestir de diferentes formas para estarem presentes em vários pontos de nossa vida."Se você se atentar, irá perceber que todo dia precisamos conviver com as rupturas de nos despedirmos de hábitos, pensamentos e concepções acerca de tudo e todos. O sofrimento será diretamente proporcional ao tamanho do apego que você possuir em coisas, pessoas e certas ideologias.

Não estou aqui fazendo apologia a um lifestyle errante e ignorante pelo mundo. Uma vida madura é aquela em que você é contábil na vida de outros. Ou seja, você faz parte do contexto e realidade da sua comunidade. Não é um indigente no mundo. É contábil e contável, no sentido de ser percebido, atuante e relevante no meio que vive. É ser alguém que presta conta aos seus. Adultos maduros não se isolam. Mas é prudente manter um equilíbrio com aquilo que você se apega ou desapega. Desta forma, traumas e sofrimentos desnecessários serão evitados.

Mas existe outro tipo de despedida não tão suportável quanto a geográfica. Ela não é temporal. Pelo menos não neste plano físico. É definitiva. É a ruptura do fôlego da vida: a morte. Esta é a forma mais brutal de arrancar gemidos inexprimíveis das nossas entranhas."O adeus é aquela palavra que evitamos dizer. Seja por idade ou por fatalidade, a morte não é assimilável. Não queremos trafegar a rota da despedida pela via da morte." No último sábado, eu estava em casa pela manhã quando fui absorvido por uma trágica história contada no Bom Dia Sábado, da TV Bahia. Um casal fora atropelado fatalmente em uma via de Salvador. Luzia e Edvaldo eram casados há 18 anos. Ela, 39 anos, costureira e guerreira. Ele, porteiro, vigia e companheiro. Os dois tentavam há 10 anos ser pais. Depois de um longo tempo de tratamento, finalmente aquele sábado era o dia em que Luzia havia organizado um anúncio-surpresa para contar para Edvaldo e a família que estava grávida de 4 meses. O sonho se transformaria em berço, fralda, tetê e bubú. No caminho de casa, o casal parou pra comer uma cocada. Eu fiquei imaginando que talvez Luzia já estivesse com algum desejo de grávida e pediu pra comer algo inusitado no meio do caminho. Mas ela ainda não podia deixar Edvaldo desconfiar. E a surpresa?! Tudo estava organizado para mais tarde. A felicidade seria finalmente completa.

Mas o plano do anúncio-surpresa foi abortado por um carro criminoso que fugia da polícia desenfreadamente. Eles três foram atropelados. Luzia, mãe.  Edvaldo, pai. Bebê, filho (a). Aquele carro atropelou a oportunidade de uma criança vir a este mundo em uma manjedoura repleta de amor."Uma criança verdadeiramente sonhada se esvaiu junto com os últimos suspiros da guerreira Luzia. Eles não conseguiram sequer se despedir. "Nem Edvaldo se despediu de Luzia. Nem Luzia de Edvaldo. E os dois não conseguiram conhecer e muito menos se despedir daquele bebê.

 Essa história me arrasou naquela manhã. Nosso Bento também é fruto de alguns bons anos de árduo e custoso tratamento. Eu imagino tudo que aquele casal teve que enfrentar para perseverar no caminho da concepção. Quantas lágrimas foram derramadas? Quantos conflitos mentais e emocionais a cada resultado negativo depois de algum ciclo de estimulação de óvulos e tentativas de fertilização?"Fazer tratamento para engravidar é aprender a se despedir da possibilidade de sermos pais cada vez que um ciclo não dá certo e, mesmo assim, tentar mais uma vez. E outra. E outra. E outra…"Na manhã daquele sábado, logo após o jornal, eu precisava resolver alguns assuntos na rua. Decidi ir sozinho - sem o Bento - pra agilizar os processos e voltar rápido pra casa e curtir o sabadão em família. Troquei de roupa. Arrumei o que precisava. Abri a porta da sala. Chamei o elevador. Foi quando Bento veio correndo se despedir com o beijinho mais gostoso do mundo seguido de dezenas de perguntas urgentes bem propícias para a hora de sair. 

 - Pai, onde você vai? Pai, o que você vai fazer? Pai, vamos brincar de tinta? Pai, Pai…

Respondi todas as perguntas. O elevador se abriu. E o Bento me arremessa, com toda a consciência de seus 3 incríveis anos de vida, sua última pergunta:

 - Papai, você volta?

Naquele momento eu congelei. Olhei no fundo daqueles olhinhos brilhantes e respirei profundamente. Não fui capaz de responder aquela pergunta. O elevador se fechou. Me ajoelhei no chão. Abracei meu Bento como se fosse o último abraço que eu teria a oportunidade de dar. O beijei dezenas de vezes. Dei cheiros demorados. Declarei meu amor e meu compromisso com a vida dele. Com os olhos marejados e o coração cheio de fé, me levantei, me despedi, entrei no elevador e fui fazer o que precisava ser feito na esperança de que sim, o papai volta.