'Passaporte de imunização' pode ser exigido na volta às aulas, sim

E outro sim: nós, mães e pais, podemos cobrar das escolas o cumprimento dessa exigência

  • D
  • Da Redação

Publicado em 8 de janeiro de 2022 às 11:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: .

Essa amiga minha se mandou - com marido e dois filhos - pra morar em Paris assim que o presidente atual foi eleito. Certa ela, eu também teria ido, se pudesse. Em nossa conversa pré-reveillon, um dos assuntos foi a vacinação das crianças contra a covid. Ao mesmo tempo em que falávamos, minha amiga recebia mensagens de uma conhecida antivax incansável tentando convencê-la a não vacinar a filha mais nova (o maior já recebeu primeira dose) e comentou "esses malucos estão em tudo que é lugar". Rimos, mas eu devia era ter chorado. Além de o assunto não ter graça nenhuma, ainda tô bem mais lenhada do que ela já que vivo num país onde o negacionismo é oficial. 

(Marcamos uma farra em Brasília, no réveillon 22/23, mas isso é outro papo.) 

Emperrar a vacinação das crianças é o mais recente (quem dera, último) ato dos insanos nomeados, eleitos e anônimos. Toda vez que leio ou assisto matérias sobre os posicionamentos do governo federal em relação ao tema, lembro da frase que assisti no teatro, numa encenação de "Come, meu filho" (Lispector), muitos anos atrás: "pepino não parece 'inreal'?". A consulta pública, a "proibição" de exigência de passaporte de imunização na volta às aulas, a necessidade de prescrição médica para que a vacina seja aplicada. Isso tudo não parece "inreal"? Para, respira, volta pro front. Mais uma etapa, mais um enfrentamento num Brasil que se tornou o mais perfeito ensaio sobre a cegueira. Crendeuspai. 

São tantas as contradições, são tantos os absurdos que empaquei aqui neste parágrafo sem saber por onde começar. Talvez, lembrar do cenário que permite tudo isso, o da Grande Ignorância fabricada ao longo do tempo e, como sabemos, nunca foi por acaso. O que falta ao Brasil é gente capaz de pensar. Deve ter zero e vírgula na frente do percentual de pessoas capazes de formular um raciocínio lógico, checar informações, organizar uma crítica, perceber um contexto, ler e interpretar. Habilidades básicas que nos faltam em todas as classes sociais.

Uns, por fome de comida mesmo, já que não há cognição possível diante da desnutrição. Outros, pela derrocada coletiva cultural, ética e estética e o mais recente chamamento funcionou como um recenseamento. A conclusão é que este país vive a mais absoluta mendicância intelectual mesmo entre "doutores/as" como, nos últimos tempos, pudemos observar. Isso mata e agora é a vez de crianças morrerem - de uma doença para a qual já existe vacina - porque adultos simplesmente não sabem que estão vivos também pelas vacinas que nos permitiram chegar até aqui. Falta de conhecimento básico de história e não apenas isso. É desconhecimento do presente mesmo, ou nunca seriam sequer discutidas, por exemplo, a obrigatoriedade da vacinação para matrícula nas escolas, a função do pediatra e outras questões cotidianas. Essas eu achava que eram conhecimento de todos/as. Mas não. Discutem como se fosse novidade, primeiro ato, primeira vacina inventada no planeta. 

É grave. Eu não imaginava que mães e pais não conheciam o fato de que o "passaporte de imunização", com o nome de "carteirinha de vacinação", pode ser exigido há tempo suficiente para chamarmos de "sempre", nas matrículas em escolas públicas e particulares deste país. Sim, é obrigatório vacinar. E outro sim: nós, mães e pais, podemos cobrar das escolas o cumprimento dessa exigência. Mais uma coisa: médicos não prescrevem vacinas, mas emitem laudos justificando a não vacinação nos raríssimos casos (não conheço nenhum) em que uma criança não pode ser vacinada. Esta que é a exceção. Percebe o absurdo de inverter essa lógica? 

(Diz que sim, vai...) 

A consulta pública é outra "inrealidade", outro pepino, outra viagem na qual este país embarca pelo déficit cognitivo. Não há conhecimento público sobre imunizantes e saúde coletiva, que sentido faz consultar leigos sobre um tema que exige tanto estudo específico? Nenhum país fez consulta alguma. Para que servem as agências reguladoras, os testes, os cientistas? Isso não tem nada a ver com "democracia", mas com o uso da ignorância coletiva para fins ideológicos. Você embarcou nessa? Quer discutir saúde pública? Então vamos falar de antibióticos, de apenas um dos problemas postos, do que já causa danos em crianças e gesta uma próxima pandemia. 

Não há registro de sequelas causadas por vacinas. Por antibióticos, sim. Estes, necessitam de cuidadosa prescrição médica, mas são usados indiscriminadamente (muitas vezes "a pedido" da família pra "acabar logo com essa gripe") causando problemas de saúde coletiva (as superbactérias são uma realidade, pode pesquisar) e individuais para a vida inteira. Os prejuízos à dentição (inclusive à definitiva) são apenas parte do problema, procure saber. Mas a consulta pública sobre uma VACINA é admissível neste país que consome antibiótico como se fosse lanche e tem fetiche por oferecer a crianças a dor da Benzetacil. O que, além da Grande Ignorância, permite tudo isso? Sim, claro, também tem a hipocrisia.

(Os casos em que Benzetacil são indicados para crianças são raríssimos, outra coisa boa de pesquisar até antes de ir ao postinho.) 

A vacina contra a covid-19 é totalmente decomposta depois de estimular o sistema imunológico, portanto não há como causar danos a longo prazo. A vacina contra a covid-19 é segura e eficaz contra agravamento e morte, também em crianças. A covid-19 já matou uma criança, entre 5 e 11 anos, a cada dois dias, no Brasil. O Brasil é o segundo país com mais mortes de crianças por covid-19. No Brasil, atualmente, a covid-19 mata mais crianças do que qualquer outra doença. A variante Ômicron avança no país e poupa (de agravamento e morte) principalmente pessoas vacinadas. A vacinação de crianças é essencial para o fim da pandemia.

Afirmo sem citar as fontes só por um motivo: esses dados, e inúmeros outros que defendem a necessidade mais absoluta da vacinação de crianças, estão disponíveis em mais publicações do que eu conseguiria enumerar. Use o Google - e busque publicações confiáveis - pra checar. 

Desde o dia 16 de dezembro, a Anvisa liberou o uso da Pfizer em cidadãos brasileiros de 5 a 11 anos. Já sabíamos que eles seriam os últimos, mas atrasar - ainda mais - e questionar a imunização de crianças é ato perverso, não tenho outra palavra. Não há mais nada de "experimental" nessa vacina e essa é outra afirmação possível apenas pela Grande Ignorância, num cenário onde a maioria desconhece as etapas de testes e os números de vacinados nessa faixa etária em outros países. São raríssimos os casos de reações mais fortes e "efeito colateral a longo prazo" é a fantasia mais patética do momento. As mães vão apagar a luz dessa pandemia. Pra nós, ainda não acabou.

(Dizem que os imunizantes começam a chegar ao Brasil na segunda quinzena de janeiro. Dizem.) 

No futuro próximo, estaremos em embates judiciais contra a obrigatoriedade da volta às aulas presenciais sem o completo ciclo de imunização. É que o poder familiar, a obrigação e direito de cuidado com a prole se sobrepõem a qualquer calendário escolar. Mas esse é um próximo assunto. Agora, preciso de bons drinques, conversa gostosa e daquele mergulho no mar. É meu primeiro Verão com biquíni tipo sunga. Dane -se a "marquinha", tô me achado poderosa demais.

Tem coisas boas que só chegam com alguma idade. Por exemplo, isso de dizer, sem qualquer pudor, que eu também queria ter nível insuficiente de cognição pra comer qualquer régue e ficar de boinha, aceitando tudo que "deus mandou" e as pessoas "como elas são". Eu seria mais feliz e você gostaria mais de mim. Mas nasci "doutrinada", achando que posso pensar e espero o mesmo de mais gente do que devia esperar. Feliz Ano Novo, aliás. Beijo, abraço, tchau.

*Flavia Azevedo é articulista do Correio, editora e mãe de Leo