Pegadas no solo do tempo

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  • Paulo Sales

Publicado em 10 de maio de 2021 às 05:00

- Atualizado há um ano

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Na semana passada, fui a um pequeno encontro em família. Diferentes gerações estavam presentes: mãe, filhos, noras, netas e um belo netinho temporão. Falamos sobre os que já foram, os que ainda estão por aqui, os que chegaram ainda há pouco. Revimos fotos muito antigas e relembramos fatos quase esquecidos. Era pura memória revolvida e era uma sensação agradável, reconfortante, como se imprimíssemos nossas pegadas no solo arenoso do tempo, por mais efêmeras que fossem.

Em certo momento, o som começou a tocar Oração ao Tempo, de Caetano, na voz de uma cantora que desconheço. Naqueles versos tão bonitos, que evocam um movimento cíclico, estava a chave para o que vinha sentindo e não sabia verbalizar. Um sentimento meio difuso de que somos parte de uma engrenagem que vai nos transformando com o lento passar das décadas: deixamos de ser filhos para ser pais, e algum dia seremos avós. Por fim, sairemos para fora do círculo.

Ao contrário de outros tempos, o fato de estar já no terço final da roda não me causou angústia. Porque era bonito ver à minha frente o curso da vida se desenrolar. Tenho saudade de quem fui, tenho saudade do meu pai, mas creio que a existência tem sido generosa comigo. Gosto de contemplar minha filha e ver o quanto ela se parece comigo, como se a hereditariedade fosse uma tocha que passamos ao próximo corredor.

Algo como o que Pedro Nava escreveu em Baú de Ossos: “Pode-se tentar a recomposição de um grupo familiar desaparecido usando como material esse riso de filha que repete o riso materno; essa entonação de voz que a neta recebeu da avó, a tradição que prolonga no tempo a conversa de bocas há muito abafadas por um punhado de terra (…); esse jeito de ser hereditário que vemos nos vivos repetindo o retrato meio apagado dos parentes defuntos; o fascinante jogo da adivinhação dos traços destes pela manobra da exclusão.”

É evidente que ainda não compreendo nada de todo esse processo. Que a sabedoria tão almejada virá encapsulada em mais incompreensão. “Vaidade de crer que compreendemos as obras do tempo: o tempo enterra seus mortos e guarda as chaves”, escreveu Cortázar em O Jogo da Amarelinha. É do alto desse mais completo breu que tento esboçar algo minimamente plausível sobre a passagem dos anos – ou melhor, sobre a nossa passagem pelos anos.

Em Linha M, Patti Smith deplora esse transcorrer inevitável: “Desejamos coisas que não podemos ter. Tentamos conservar certos momentos, sons, sensações. Quero ouvir a voz da minha mãe. Quero ver meus filhos ainda crianças. Mãozinhas pequenas, pés ligeiros. Tudo muda. Garoto crescido, pai morto, filha mais alta que eu, chorando por causa de um sonho ruim. Por favor, fiquem aqui para sempre, digo para as coisas. Não vão embora. Não cresçam.”

É quase um pedido de socorro, e não compartilho do mesmo sentimento. Por mais que os melhores momentos do passado me façam lamentar o fato de estarem guardados em uma gaveta inacessível, permaneço enfrentando a vida como um falcão. Um falcão um tanto alquebrado, de musculatura enfraquecida e fibras tensas, incerto quanto ao rumo e as tempestades, mas ainda assim um falcão. Voando alto e cantando baixo: “Peço-te o prazer legítimo /E o movimento preciso /Tempo tempo tempo tempo / Quando o tempo for propício”.