Pela primeira vez na história, celebração a Xangô não será realizada no terreiro Aganju

Pandemia obrigou cancelamento de festejos ao orixá da Justiça que começariam na segunda passada e iriam até o fim do mês

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  • Da Redação

Publicado em 19 de julho de 2020 às 06:00

- Atualizado há um ano

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Não são incomuns terreiros de candomblé saltarem festas em algum momento da história. Quando a maior liderança religiosa da casa morre, o ritual obrigatório é o fechamento por um ano (o axexê) até que, respeitado o luto e por meio dos búzios, uma nova escolha conduza a sucessão e, por fim, o retorno das atividades.

O Ilê Axé Opô Aganju nunca passou por isso. Fundado em 13 de janeiro de 1972, em Lauro de Freitas, continua tendo pai Balbino Daniel de Paula, o Obaràyí, como seu primeiro e único babalorixá. Em 48 anos de existência, o terreiro jamais havia sido fechado até esta pandemia.

Pela primeira vez, a fogueira a Xangô (patrono da casa) não foi acesa. A covid-19 forçou um inédito recolhimento dos atabaques e impediu a montagem das bandeirolas vermelhas e brancas, saudando o orixá da Justiça.

“É uma tristeza ver isso aqui vazio, ainda mais sabendo que haveria gente de tantos lugares do Brasil nesta época. Mas é uma recomendação médica importante. Além do mais, os próprios orixás pediram que não houvesse festa. Eles entendem esse momento. As oferendas continuam, mas a festa está proibida”, diz Balbino. Pai Balbino durante os festejos a Xangô no Ilê Axé Opô Aganju (Foto: Haroldo Abrantes/Divulgação) Na folhinha de calendário confeccionada pelo terreiro a cada início de ano, em cores amarelo opaco e vermelho vibrante, o mês de julho é sempre todo dedicado a Xangô. As homenagens começam no dia 13 (com a fogueira de Airá sendo acesa) e vão até o dia 25, com a procissão a Iyámassê, a mãe do orixá, rei de Oió.

O ciclo completo são dozes dias de celebração, remetendo ao número de qualidades de Xangô (Obalubé, Ogodô, Jakutá, Aganju etc). Durante este intervalo, são realizadas cinco festas. A primeira delas, o ajirê de Xangô, acontece no dia 14. A data foi carinhosamente escolhida por Balbino para afagar o etnógrafo Pierre Verger, a quem o babalorixá manteve uma longa amizade durante a vida – e mesmo depois dela.  Folhinha do calendário do Ilê Aganju indicando as festas de Xangô previstas para o mês de julho, canceladas por conta da pandemia (Foto: André Uzêda) “Como 14 de julho é o dia da Queda da Bastilha e tem toda essa importância como o começo da Revolução Francesa, escolhemos esse dia para começar nossos trabalhos e também celebrar Verger. Ele foi um francês que deu enormes contribuições para o nosso candomblé”, diz o pai de santo, às vésperas de completar, em dezembro próximo, 80 anos.

Fotografia, eguns e Afonjá Em 1949, durante uma viagem à Ilha para fotografar os terreiros dos eguns (culto nagô que invoca os mortos), Verger fez uma foto de Balbino bem moleque, descalço, serrando os dentes e de braços cruzados. Ele tinha apenas 9 anos. A família Daniel de Paula comandava um dos terreiros de eguns em Ponta de Areia. 

Daquele registro, anos depois, nasceriam laços fraternais entre o experiente fotógrafo e o modelo mirim, fortalecidos entre viagens à África, ajuda na fundação do Aganju e partilha nos insondáveis mistérios da fé. No ano passado, a fogueira e a festa para Xangô (Foto: Divulgação) Dentro da casa de Xangô, no terreiro do Aganju, há uma foto de Verger em destaque. Outra imagem imponente, na parede oposta, é de Mãe Senhora – terceira ialorixá do Ilê Axé Opô Afonjá (1890-1967) e quem iniciou Balbino no candomblé.

“O Afonjá e o Aganju estão sempre ligados. Agora mesmo nesta pandemia conversamos bastante sobre a abertura das atividades. Mesmo que o poder público autorize, decidimos que não vamos reabrir. Não adianta abrir o terreiro em agosto se o nosso ciclo de festas começa em junho, com a festa de Oxóssi. Agora só no ano que vem mesmo”, diz Balbino, conformado.

A combinação entre ser o babalorixá mais antigo e filho de Xangô deu a Balbino o direito de jogar os búzios que selaram a entrada de Mãe Ana como a sexta liderança do Afonjá, substituindo a lendária Mãe Stella de Oxóssi, morta em dezembro de 2018.

“Foi um dia de pressão danada, de várias partes e pessoas interessadas na sucessão. Quando acabou tudo voltei aqui pra minha casa e fiquei jogando um joguinho no celular pra aliviar aquela agonia. Deixei eles lá”, relembra Balbino.

Xangô é o patrono tanto do Afonjá quanto do Aganju (os dois nomes dos terreiros são qualidades dele). Além da ligação histórica entre as duas casas, neste momento, as duas lideranças religiosas de cada uma têm no orixá da Justiça seu principal santo – sim, Mãe Ana também é de Xangô. Entrada do Aganju, com imagem de pai Balbino jovem feita por Pierre Verger (Foto: André Uzêda) Este seria o motivo para a festa de 2020 ser ainda robusta. Com o som do adaró convidando todos a participar da obrigação; os acarás dando o início aos festejos e as celebrações se estendendo também a Iansã, esposa de Xangô. Além da saudação firme ao orixá: “kawô kabiesilé”. Ainda na entrada do terreiro, desenho de Xangô (Foto: André Uzêda) Pai Balbino não mostra tristeza pelo cancelamento da festa. A resignação do líder religioso é de quem entende as preocupações sanitárias e os desígnios formulados em um plano superior. Sua habitual frase, repetida sempre que necessário, explica e alivia o momento: “Xangô quis assim”.

[Esta coluna é dedicada ao amigo Wanderson Urelha, mogba do Aganju, quem me contou a história do inédito cancelamento da festa].