Pelas pessoas na sala de jantar

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  • Da Redação

Publicado em 2 de abril de 2023 às 05:00

- Atualizado há um ano

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“Essas pessoas na sala de jantar são ocupadas em nascer e morrer”, diz o refrão de Caetano e Gil em Panis et Circences. Pois sim, e hoje estou aqui para falar: estão ocupadas em nascer e morrer, eis a sua vantagem! De certo modo, na mesa, entre os pratos e talheres, seja de louça ou de pirex, estão as pessoas que vivem a vida como a vida leva. Estão lá nessa grande janta ou almoço de domingo um pai que foi pastor adventista e largou a pregação para bebericar, uma mãe que insiste ainda por um CD gravado como presente só com os sucessos dos anos 80, um tio que é uma lenda por dever fundos e fundos ao banco e querer construir uma piscina, uma tia que insiste em fazer você de parceria para uma rodada de buraco, um primo que obriga todos a dançarem... Estão vivendo sim: outras vidas que não a nossa.  

Sem saudosismo e romantização, ora. As pessoas na sala de jantar podem ser chatas mesmo, conversadeiras, intrometidas, cafonas. Mas é este o ponto, cada presença de alguém tão diferente do que escolhemos ser é um buraco de fechadura para um mundo para além do nosso umbigo, uma troca de palavras que desabitua as nossas próprias. Hoje eu sei, em retrospectiva, que aquelas tantas vezes em que fui obrigado a seguir adultos para casa de outros adultos e ter que ouvir, espremido em um sofá ou em um banco perto da mesa, sobre prestações de cartão ou SERASA, piadas incompreensíveis ou histórias compridas, deram mais vozes à minha cabeça. Mas só hoje. Se eu tivesse um fone de ouvido e um celular, sou honesto para admitir que só prestaria atenção ao que dissessem quando fosse anunciada a senha do wifi e sugerido o lugar melhor para eu me sentar perto de uma tomada. 

Outro dia um amigo me disse que uma aluna adolescente lhe declarou: “Professor, a sala de aula é o único lugar que eu não controlo o tempo, e isto me aflige. Por isso que eu peço tanto para ir ao banheiro, beber água... É meio que para fugir dessa sensação, sabe?” Em todos os outros momentos, ela consegue ditar o ritmo: das conversas, da velocidade e do tempo e espaço, porque onde estiver pode estar envolvida na continuidade de suas interações. É uma ação linear, seja onde estiver: uma fase do jogo que parou, um episódio da série que interrompeu, uma conversa de grupo de WhatsApp com os mesmos amigos do prédio. Em uma aula ela se via no único lugar em que não escolhia o que iria ver e como iria ver. 

O neurocientista Michel Desmurget lançou um livro como resultado de um estudo sobre a ação do excesso de telas para a cognição humana: A Fábrica de Cretinos Digitais (Autêntica, 2021). É um título forte e, através dele, se torna fácil deduzir que as perspectivas não são animadoras. O autor divulgou um dado que se tornou manchete na imprensa de todo o mundo: pela primeira vez, uma geração pode registrar um QI inferior à geração passada. Nos testes feitos até então, cada geração de filhos respondia com um melhor desempenho que à dos pais, sucessivamente. Nesta nova fase de exames, não, mesmo em países com estabilidade e estrutura educacional como Dinamarca, Finlândia e a França, país de Desmurget. 

Para além dos números e medidas, em que se pese ser mesmo possível mensurar a inteligência de alguém, e dos aspectos neurais em termos de memória e concentração, é significativo que tal alarme ressoe sobre a primeira geração fora da sala de jantar. Das conversas ruins, das músicas velhas, dos lugares que deixaram de existir, das fofocas que revelam expectativas sobre escolhas de uma vida. Que ninguém subestime a capacidade de uma escolha existencial permanente a partir de uma única história vinda de um amigo da família, que jamais voltaremos a ver! Onde afinal se ensinaria o cruzamento de referências que formam o nosso pensamento senão pelo contato múltiplo de muitas e às vezes desordenadas palavras? Qual seria a fonte de nossas possibilidades de entendimento e expressão senão houvesse um acúmulo de detritos de experiências que emergem de nós como seiva? Só a escuta da música que não escolhemos promove o “tropicalismo” capaz de criar uma identidade. Com fones de ouvido e uma tela sempre a postos, estamos tempo demais envolvidos em nossa própria companhia. É preciso brechas de diferença e contatos de estranheza para que consigamos ser um pouco o outro, e nós mesmos podermos ainda ser outros. 

*Saulo Dourado é escritor de livros de ficção e professor de filosofia em colégios de Salvador