Perícias mostram perigos estruturais e histórico Sulacap vira alvo de briga judicial

Símbolo arquitetônico tem elevada inadimplência, infiltrações e “risco para transeuntes”, segundo laudos

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  • Fernanda Santana

Publicado em 28 de fevereiro de 2021 às 08:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Nara Gentil/CORREIO
. por (Foto retirada de laudo)

O sétimo andar do Edifício Sulacap é um lugar onde ninguém entra e ninguém sai. Exceto o proprietário, que aparece, às vezes, para vistoriar as coisas. Há quatro anos, o prédio, um dos símbolos arquitetônicos de Salvador virou alvo de briga judicial e cenário de perícias que revelaram danos estruturais. Aquele último pavimento e o terraço são o foco do litígio.

A disputa judicial entre a administração e o dono das salas do último andar começou em 2018. São dois processos em que o proprietário, o advogado Jorge Arapiraca, alega negligência do condomínio em realizar obras de reparo no imóvel, e pede ressarcimento pelos danos sofridos. 

São 574 páginas de um embate jurídico ainda sem resolução, enquanto os problemas se acumulam. Em fotos, o sétimo andar e o terraço aparecem com focos de infiltração, chão alagado e  estruturas metálicas em “estado crítico”. Segundo a Defesa Civil, de 2018 a 2020, 19 edifícios em risco foram mapeados - o Sulacap não está nessa lista. Hoje, 342 casarões correm risco de incêndio ou desabamento.

As curvas horizontais dos oito andares – sete visíveis e um subsolo, sem garagem – dão uma estética de movimento ao prédio. Concebido como sucursal da Companhia Sulamérica de Capitalização, num projeto de Anton Floderer e Robert Prendice, é um símbolo do Art Déco, inaugurado em 1946. 

Desde 2008, é tombado pelo Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia (Ipac). Nos dias de Carnaval em Salvador, é um dos marcos do circuito Osmar (Campo Grande), bem na esquina da da Rua Chile com a Carlos Gomes, onde aconteciam os tradicionais encontros de trios elétricos.  Símbolo de Art Déco, edifício foi projetado por Anton Floderer e Robert Prendice, e inaugurado em 1946 (Foto: Nara Gentil/CORREIO) Não fossem esses predicados, a situação talvez ficasse reservada às minúcias administrativas do prédio, como sugeriu a síndica, que se negou a dar entrevista. “Não é por má vontade, mas mexer na estrutura hidráulica de um prédio como esse não é para especuladores”, escreveu ela, numa troca de e-mails, em 2017, antes do primeiro processo. Ela tentava responder a problemas já conhecidos internamente. Os próprios condômios - em média, 100 - são os donos do edifício, cujas salas foram vendidas gradativamente desde os anos 60, pela Sulamérica Capitalizações. Em 2014, uma perícia técnica realizada em toda a estrutura do prédio evidenciou, pela primeira vez, problemas como fissuras na fachada e em uma das marquises, vazamentos, deslocamento de concreto e peças metálicas da claraboia fortemente danificadas, com risco de queda. 

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Durante a uma hora e meia de vistoria pelo prédio, o engenheiro também destacou problemas no sistema de incêndio, “infiltrações no sétimo andar causadas por desgaste no terraço” e esteve no subsolo, onde fez observações, no bloquinho, sobre o impacto de vazamentos nas estruturas de concreto. 

Quatro anos depois, numa manhã de agosto de 2018, outro engenheiro apareceu, dessa vez contratado por Arapiraca, para uma nova visita. Os mesmos problemas foram verificados, com um acréscimo: o risco de acidentar alguém. “A estrutura metálica pode acertar algum transeunte com provável fatalidade”. E o engenheiro continuou: “Há também o risco estrutural ao imóvel caso não receba o devido tratamento”. Uma obra para reparar os danos, orçada em R$ 135 mil por uma empresa de engenheira, não chegou a acontecer. 

Naquela mesma troca de e-mails, em 2017, a síndica, eleita em votação realizada no edifício dois anos antes, reconheceu que, “em 70 anos, o prédio não passou por uma manutenção adequada”. 

Muita prioridade, pouco recurso  Quando a Sulamérica Capitalizações deixou o prédio, as salas foram progressivamente vendidas e alugadas e, assim, o perfil dos condôminos e do prédio mudou. Chegaram, principalmente, profissionais liberais – como dentistas, protéticos e costureiras. 

Era o início da década de 1960, época gloriosa naquela região central da capital baiana. Foi nesse período que Gilberto Gil aparecia no prédio, para composição de jingles na finada Gravações JS, uma das mais importante da época, em Salvador. O maestro Carlos Lacerda sempre aparecia por lá, às tardes, como também a família Macêdo. O Sulacap ficou, na paisagem, como um dos símbolos de um Centro rico. 

Aos poucos, os recém-chegados fizeram do Sulacap um legítimo prédio de centro de cidade, onde, de tudo, há um pouco. Atraído pela estética do edifício, e sua riqueza histórica, Jorge Arapiraca comprou a primeira fatia do imóvel há quase 20 anos, uma sala no quinto andar, onde veio a funcionar seu escritório de advocacia. 

Tinha o sonho, nunca realizado, de comprar o sétimo andar e abrir, com vista para a Baía de Todos os Santos, o que chama de “escritório conceitual”, com hora para trabalho e hora para atividades intelectuais e culturais. “Toda vez que vou lá, morro e nasço de novo, porque é um prejuízo também muito grande, em uma coisa que já poderia ser resolvida”, diz Arapiraca.“As perícias já mostraram isso. É um prédio que tem uma riqueza histórica, arquitetônica, mas no Brasil, isso não é considerado”. Pelas páginas dos processos, entre petições, despachos e defesas, não há menção ao fato de ser o alvo da briga um patrimônio arquitetônico e cultural baiano. O Ipac respondeu não ter conhecimento de qualquer obra ou problema no Sulacap. 

Recentemente, o órgão não realizou nenhuma vistoria no imóvel, mas afirmou que pode encaminhar uma equipe técnica caso haja algum dano ao “bem protegido”, se for notificado de algum problema.  Prédio foi tombado pelo Ipac em 2008 (Foto: Nara Gentil/CORREIO) Embora ainda esteja em fase de tombamento provisório, a tutela do Sulacap já está com o Ipac e, na teoria, dependeria do órgão a aprovação de quaisquer mudanças no edifício e agir em casos eventuais denúncias sobre danos, com multas, por exemplo. 

Arapiraca, com vocabulário de advogado clássico, sempre atribuindo datas, nomes e porquês a cada afirmação que profere, diz nunca ter conseguido ocupar as cinco salas compradas do sétimo andar.  “Mas é um problema para o prédio, não meu só”, defende. Ele põe a responsabilidade da reforma dos danos que afetam o pavimento, já que as perícias  apontaram nessa direção, no condomínio. E o condomínio, nele. 

No sexto andar, a falta de consenso chega em forma de goteiras, reflexo das infiltrações. Gilmario Alves,  protético que bate ponto no Sulacap desde 2003, viu o problema se agravar nos últimos dois anos.“Isso está visível. Já perdi até uma televisão. Para lhe ser sincero, é uma questão, uma briga que afetam o prédio todo”, diz o artesão de próteses.Dos condôminos, uns são proprietários das salas. Outros, locatários, que pagam, em média, R$ 700 pelo aluguel. A administração não detalhou quantos são donos, nem inquilinos. A todos é cobrada uma taxa de  R$ 180 para manutenção do prédio.

Na última década, a inadimplência no edifício, no entanto, variou de 30% a 40%. A desocupação, que costuma ficar no patamar dos 30%, também prejudica a arrecadação. “As prioridades são muitas e os recursos financeiros, poucos”, reconheceu a atual administração numa ata.

"Já vimos marquises cair antes", alerta arquiteto O Sulacap está localizado num perímetro onde, até a década de 60, estavam concentradas as riquezas, os comércios, as pessoas. E atraía olhares dos mais curiosos, pois  era um símbolo de modernidade fincado em meio à arquitetura antiga dos arredores.“Lembro de, ainda menino, ir a um oculista no Sulacap. Não tinha a dimensão da importância, mas achava que era um prédio novo, tinha cara de coisa nova”, recorda Isaias Carvalho, arquiteto, professor aposentado da Universidade Federal  da Bahia e escritor de livros como Memória Urbana.O ar de novidade não resistiria às mudanças previstas para o planejamento urbano de Salvador à época. Primeiro, veio a proibição, entre 1966 e 1984, do uso residencial do Centro. “Com isso, você afasta todo o interesse privado residencial do Centro e a cidade começava a crescer, para seguir um projeto, para o norte, local pouco habitado”, explica. 

Depois, os novos habitantes começaram a ser bem-vindos, mas nem por isso aparecerami. Grandes centros comerciais haviam sido inaugurados do outro lado da capital – como o atual shopping da Bahia –, além da construção do Centro Administrativo (CAB), que coroa a nova investida urbana.“Desde os anos 30, desejava-se a cidade ‘moderna’, e essa vontade foi sendo concretizada na região mais ao norte, como  as condições eram mais interessantes aos investidores”, explica Isaias.Com o Centro deslocado no mapa, o resultado quase natural é o afastamento dos antigos frequentadores e a desassistência em outras searas, como de transporte e segurança públicos. 

As reformas e valorização do entorno na última década, com abertura de dois hotéis e revitalização de outros espaços, esperavam os condôminos, trariam algum benefício para o Sulacap. “Mas é muito embrionário”, afirma o professor da Faculdade de Arquitetura da Ufba, Nivaldo Andrade. Inadimplência no edifício é de 30% a 40% (Foto: Nara Gentil/CORREIO) O Sulacap não é o único a viver problemas estruturais, abandonos ou inadimplências. Mas, é possível identificar nele dois problemas que se espalham, como pó de cal, em imóveis históricos e tombados. Sem entender o que significa um tombamento, duas margens são abertas, segundo Nivaldo “Não fazer nada ou fazer qualquer coisa, como desconfigurar a estrutura”, diz Nivaldo. No Sulacap, nem todas as salas mantém o desenho original. Na história recente, edifícios tiveram partes de suas estruturas deixadas para cair. “Já vimos desabamentos de marquises, de estruturas inteiras”, alerta o arquiteto e pesquisador. Das janelas do último andar do Sulacap, pessoas puderam acompanhar a movimentação na Rua Chile depois de uma marquise do Hotel Palace, outro símbolo Art Déco – reaberto em 2017 depois de reforma – cair, corroída pelas ferrugens. Uma pessoa atingida morreu e outras duas ficaram feridas, naquele dia 6 de dezembro de 2000. 

O assunto rondou por semanas na vizinhança, como um fantasma que, todos sabiam, poderia estar mais próximo do que se pensava. Depois, a pauta esfriou, como se fosse problema do passado, pelo qual o presente não tem interesse.